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Cidades Brasileiras – 136 tons de pele
Bem mais que nas outras regiões do mundo, as cidades brasileiras foram o receptáculo de todas s contradições possíveis da psicanálise. Nesse país que aglutina vários países, as cidades desempenharam um papel considerável na expansão de todas as correntes da psicanálise. Todas reivindicam identidade própria, não obstante encontramos características comuns em cada uma delas. Nessas cidades – Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Campinas Belo Horizonte -, tive uma acolhida calorosa e sempre me surpreendeu a paixão com que, há diversas gerações, os brasileiros das grandes cidades se interessam não só por todas formas de psicoterapia e medicina da alma, como também por sua história e a história mundial da psicanálise. Tudo se passa como se a curiosidade pela alteridade os impelisse cada vez mais a compreender e escutar as diferenças culturas. Uma pesquisa listou no Brasil 136 tons de pele: brancas, negras, pardas, oliva, morenas, amarelas, indefiníveis. Nada mais estimulante que dar conferências nas cidades brasileiras perante um público entusiástico, atento e generoso. Em cada cidade, existem dezenas de associações psicanalíticas, inúmeros institutos de ensino e iniciação clínica. Quanto aos terapeutas, interrogam-se tanto sobre os distúrbios psíquicos – coletivos ou individuais – como sobre a maneira de abordá-los nos meios sociais e mais pobres, em especial nas favelas.
Em todas essas cidades sinto-me em casa, e a cada périplo encontro os mesmos amigos, minha editora Cristina Zahar e meus ex-doutorandos, agora professores, que também encontro no mês de janeiro, em Paris. Pois é durante o inverno europeu que os brasileiros vão ao estrangeiro. Os que conheço e amo viajam muito e falam várias línguas – Ana Maria Gageiro, Catarina Koltai, Marco Antonio Coutinho Jorge, Paulo Ceccarelli -, adoram frequentar os bistrôs parisienses, passar noites inteiras trocando ideias e participar de seminários na universidade. Como muitos latino-americanos, são elegantes e corteses, preocupados com sua aparência e seu corpo, atento à beleza das peles, da mais clara à mais morena. Atravessam com facilidade as fronteiras, apreciam a estética das “passagens” tão bem descritas por Walter Benjamim. Gostam de flanar, de jantares festivos, passeios, presentes de cultivar a autoestima. Gosto dos psicanalistas brasileiros, aprecio seu saber clínico, suas qualidades terapêuticas, seu pragmatismo, sua curiosidade insaciável, sua capacidade de fazer a cultura freudiana viver e de zombar sutilmente da arrogância com que seus pares franceses continuam a tentar colonizá-los, tomando-se por gurus.
Quando alguém vem de Buenos Aires ou Paris e aterrissa numa cidade brasileira, experimenta uma dupla sensação: déjà-vu e estranheza. Tudo bem, as estações são o avesso das europeias, mas é igualmente como se cada cidade reunisse um condensado de todas as estações possíveis: o inverno de manhã, a primavera ao meio-dia, o verão à tarde e o outono à noite. Consequentemente, a cidade brasileira participa não de um cosmo cosmopolita à la Borges, mas de uma mestiçagem hierarquizada com extrema violência. Nela, as relações entre o corpo e o intelecto são de natureza antropofágica, colonial, bissexual. Comer o outro, recalcar o outro, cuspir o outro, isto é, o inimigo, o estrangeiro, o índio da Amazônia, o próximo, o mestiço, o semelhante, o miserável, o homem e a mulher: tal seria a maneira como o Brasil incorpora a imagem que faz de si mesmo em sua relação com o mundo europeu, um mundo sempre vivido no modelo de uma projeção oscilante ente devoção e rejeição.
Embora, para os argentinos urbanos, especialmente os porteños, a psicanálise tenha sido o meio de elucidar uma história genealógica conduzida por ondas sucessivas de migração, e tenha se implantado através de uma verdadeira nostalgia heroica de mestres fundadores reunindo exilados e filhos da terra, no caso das cidades brasileiras, como aponta a socióloga e psicanalista Lucia Valladares, ela permaneceu a expressão consumada de um saber racional, capaz de responder a interrogações culturais e, simultaneamente, moderar os excessos de uma sociedade urbana feudalizada e impregnada de pensamento mágico, o dos curandeiros, feiticeiros ou ainda os líderes carismáticos de seitas. Tal saber, aliás, mistura a dupla herança do positivismo de Auguste Comte, que em 1891 presidiu a redação da nova Constituição republicana, e do culto antropofágico, que parodia a concepção freudiana da lei cerceadora e do desejo culpado.
Em 1928, em seu Manifesto antropofágico, parcialmente inspirado nos manifestos surrealistas, Oswald de Andrade, grande leitor de Freud, afirma que só a ingestão simbólica do colonizador permite à modernidade brasileira consolidar-se segundo um processo de devoração estética que consiste não em imitar a civilização europeia, mas em comê-la a fim de melhor assimilá-la. Ela convida seus contemporâneos a uma revolução “caraíba” que resultaria na morte do patriarcado e no retorno a um matriarcado original através do qual se exprimiram todos os desejos recalcados.
Oswald reivindica o nome de Pindorama, ou a “Terra das Palmeiras” utilizando pelas tribos indígenas para designarem seus país na língua tupi-guarani: “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciarias do matriarcado de Pindorama”, “Tupi or not Tupi, that is the question” Por que a língua tupi não subsistiu? Sem dúvida porque a língua portuguesa foi utilizada pelo colonizador com a finalidade não só de dominar como de manter o status privilegiado da elite com relação às classes desfavorecidas. Mesmo assim, o português brasileiro se configurou de maneira bem diferente, pois sofreu influência das línguas indígenas e africanas, o que lhe conferiu nuances distintas da língua falada em Portugal… No que se refere à identidade e à mistura brasileiras, “só a antropofagia nos une”.
No Brasil, a psicanálise é ao mesmo tempo a doença e o remédio para a doença, a razão e a transgressão da razão, a norma e a rebelião contra a norma, a lei do pai e a irrupção de uma heterogeneidade maternal. Ora ela se pretende submetida a uma ordem universa que a vincula à Europa ou à outra América, ora ela se pena em ruptura como esse ideal a ponto de soçobrar numa busca frenética por uma “brasilidade”. Ousaria eu dizer que ela muda de estação a cada hora do dia e da noite, que por essa razão nos deslumbra, a nós, europeus, oferecendo-nos o espetáculo de uma notável vivacidade? Como diz Gilles Lapouge em seu magnifico Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil (2011): “Frequento esse país regularmente, e eu o pintei de memória. Mosto suas imagens. Lembro-me de seus cheiros e temporais. Paralelamente, percorro sua história, brutal e faustosa, da qual a Europa só conhecemos fragmentos. Falo igualmente do Brasil de hoje, dividido entre horror das favelas e a impaciência de um povo que, pela primeira vez, talvez, sabe que está no controle do próprio destino. Ser apaixonado por um país é isso.”
Não é por acaso que a universidade desempenha, no caso da psicanálise, um papel primordial nesse país em que as escolas psicanalíticas, independentemente das tendências, instalaram-se não nos departamentos de medicina e sim nos de psicologia, instaurando uma osmose completa entre as práticas clínicas e a transmissão da doutrina e do corpus. Ensinada como um saber que racional, a psicanálise, em vez da psicologia, assumiu posição crucial na sociedade brasileira, em especial nas universidades, marcadas por uma expansão das ciências humanas iniciada no entre guerras por intelectuais franceses: Georges Dumas, Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss. Por conseguinte, foi muito poderosa numa época (1980-2016) em que, na Europa e nos Estados Unidos, sofreu cheio de contragolpe de uma crise que a obrigou a se desenvolver cada vez mais fora de um sistema universitário dominado pela psicológica comportamental e a psiquiatria biológica.
As escolas psicanalíticas brasileiras foram fundadas por pioneiros locais destacando-se Durval Marcondes (São Paulo) e Júlio Porto Carrero (Rio de Janeiro), além de muitos, outros. Nenhum deles, contudo, comportou-se como um guru. De modo que a psicanálise, nas cidades brasileiras, foi a princípio um assunto coletivo que não reivindicava nenhuma figura de autoridade. Longe da Europa, longe dos “mestres” – de Melanie Klein a Jacques Lacan -, os psicanalistas brasileiros sempre cultivaram um formidável ecletismo, fundado nas relações horizontais entre os membros do grupo em vez de na submissão a uma chefia. Daí sua força clínica, muito mais sólida, desde o início do século XXI, do que a dos países europeus, a despeito da lembrança do sinistro período da ditadura militar (1964-84), quando os militantes freudianos rebeldes foram perseguidos, enquanto a maioria de seus colegas tentava permanecer “neutra”. Numa carta de 1926 dirigida a Durval Marcondes, Freud escreveu estas palavras ”Infelizmente não domino seu idioma, mas, graças aos meus conhecimentos da língua espanhola, pude deduzir de sua carta e de seu livro que é sua intenção usufruir dos conhecimentos adquiridos com a psicanalise em obras literárias e, de uma maneira geral, despertar o interesse de seus compatriotas pela nossa ciência. Agradeço-lhe sinceramente seus esforços e desejo-lhe muito sucesso”. Ele se surpreenderia ao ver a que ponto esse desejo tornou-se realidade nos dias de hoje.
E devo dizer que me inclino a compartilhar a opinião otimista de Stefan Zweig que residia em Petrópolis, onde se suicidou em 1942: “A questão que se coloca é a seguinte: como os homens conseguirão viver em paz na terra, a despeito de todas as diferenças de raças, classes, tons de pele, religiões e convicções? Nenhum país do mundo resolveu isso de uma maneira mais auspiciosa que o Brasil. E o resolveu de uma maneira que, na minha opinião, merece não só a atenção, como a admiração do mundo” (Brasil, um país do futuro, 1941).
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