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Filosofar é a arte (o vício talvez) de fazer perguntas… Assim sendo, a motivação para esta breve reflexão que se segue parte do propósito de se aplicar a filosofia ao cotidiano.
Muitos pensadores entendem mesmo que a filosofia se preocupa menos com as respostas do que com perguntas agudas e bem elaboradas. É como na brincadeira de crianças: a cada resposta dada sempre cabe um novo “por quê?” Afinal, como disse Millôr Fernandes “Livre pensar é só pensar”.
Para Karl Jasper1 seriam três os fatores ou impulsos a parir dos quais a filosofia “acontece”: espanto (assombramento, surpresa), dúvida e situações-limite. Ainda mais, para ele a filosofia não pode se desenvolver apenas sobre a razão: ela não pode caminhar sem esta, mas não sobrevive apenas por ela.
Platão via no “espanto” a origem da filosofia (a palavra era o “thaumazein”), no sentido de assombro eu diria, um estado da mente e da alma que pode facultar o filosofar. Sobretudo naquela época, e ainda agora, o assombro diante dos mistérios do Universo e da vida. Aristóteles também qualificou o espanto como origem da filosofia2: a admiração nos ensinou a filosofar – os movimentos da lua, do sol, a criação do Universo… Conforme Heidegger, “[…] Já os pensadores gregos, Platão e Aristóteles, chamaram a atenção para o fato de que a filosofia e o filosofar fazem parte de uma dimensão do homem, que designamos dis-posição (no sentido de uma tonalidade afetiva que nos harmoniza e nos convoca por um apelo).” “Platão diz (Teeteto, 155 d): mála gàr philosóphou touto tò páthos, tò thaumázein, ou gàr álle arkhè philosophías hè haúte. ‘É verdadeiramente de um filósofo estes páthos — o espanto; pois não há outra origem imperante da filosofia que este.’ ”3 Enfim, esses grandes filósofos e a filosofia antiga olharam de modo diferente para tudo que era usual no dia-a-dia e visto como automático e permanente: perguntaram o porquê de ser daquele jeito e, a partir disso, passaram a estranhar o que era hábito. A simples pergunta “por quê?” desestabilizou o senso comum…
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Outra origem histórica da filosofia é a dúvida, que nos confronta com a incerteza a respeito do que julgamos conhecer e do que julgamos verdadeiro. Descartes propôs a dúvida hiperbólica, dúvida metódica, sistemática, inaugurando a modernidade, e que por meio de tal duvidar poderíamos superar toda nossa incerteza e insegurança do conhecimento; ele duvida de tudo, como todos sabem, e conclui que o sujeito empírico, sujeito da observação e conclusão, então existia – e existia por conta desse “Cogito”4.
Jasper, que era formado em medicina, anuncia uma origem mais profunda para a necessidade de filosofar: a psicopatológica, que completa a tríade com o espanto e a dúvida. Trata-se do “fracasso” que usualmente provamos nas situações-limite.
Se espanto e dúvida colocam em questão o que antes não se inquiria, tornando-nos agora familiarizados com um mundo objeto da investigação filosófica, as situações-limite (nosso fracasso diante delas) colocam em debate os apoios que pensávamos supostamente ter, mas que não tínhamos verdadeiramente. Ademais, o dito fracasso não é expressamente do mundo objetivo, do que vai por fora de nós, mas ele diz respeito a mim, à minha interioridade, àquilo que de fato sou (ou imagino ser…). “No fracasso sou confrontado ao fato de ter que conquistar a mim mesmo, de que me falto a mim-mesmo e de que não é seguro que o conquistarei.”5
O espanto e a dúvida metódica como genealogia do filosofar são desfocados pela força com que a experiência das situações-limite pode levar à inquietação. Tudo está em jogo, inclusive o ser de quem as experimenta. Mas pode haver alguma compensação: “do desmoronamento de uma solidez, que todavia era enganosa, vem a possibilidade de pairar – o que parecia um princípio tornou-se o espaço da liberdade –, e o aparente transmudou-se em algo de onde o ser autêntico corresponde ao apelo.”6
…
Pois não estamos vivendo agora a largueza completa desse espectro das três causas do fazer pensar, ou seja, o assombro, a dúvida, e nossa fragilidade em uma inesperada situação-limite (coletiva)? Sim, já adivinharam todos, refiro-me à pandemia provocada pelo novo coronavírus. Posicionamos nossos sentimentos nesse instante perpassando (i) o espanto de ela haver ocorrido e ter mudado a “normalidade” de nossos mundos, (ii) a dúvida quanto à segurança de nosso saber a respeito de epidemias, e desta em especial, tal a profusão de informações e contrainformações veiculadas não só na mídia, o que seria até de se esperar, mas igualmente nos próprios cânones da academia, e (iii) nosso fracasso diante dessa situação-limite (saindo um pouco do script jaspersiano, bem como daquele de Charles Taylor, embora alinhado à sua compreensão geral7, eu diria, fracasso exterior de nossa objetividade científica, institucional e governamental), que escancara minha incapacidade de como saber lidar com meus temores todos e com a nova realidade social repentinamente imposta (e, nesse ponto, nem quero entrar em considerações do tipo “vigiar e punir”8 de sociedades disciplinares, quando caem-lhe muito bem os motes de ameaçadores desastres, como doenças epidêmicas, por exemplo).
Todavia, como apontou Jaspers, podemos nos aclimatar a esse novo ambiente (não sem sofrimento, por certo) e… filosofar!
Um primeiro bom exemplo é explorar a idéia de “desrelogização” da vida de cada um. Tomo emprestado esse tema/palavra do filósofo argentino Dario Sztajnszrajber.
É inegável que nesses tempos entremeados de modernidade e pós-modernidade, consumismo e hipercapitalismo, individualismo e egocentrismo, consumismo e superficialidade, o tempo se tornou um sentimento angustiante e de perplexidade: falta o tempo o tempo todo; as pessoas correm cada vez mais tentando atingir um aonde que nem bem sabem e também não respondem em profundidade o porquê da correria para lá chegar (essa deformada relação com o tempo metamorfoseou-se na matéria prima da ansiedade). O ritmo da vida de cada um de nós, sem dúvida alguma, é hoje pautado pelo relógio, o digital, o analógico, o atômico, de pulso, de parede, o do celular, do notebook, de cabeceira, o que for, mas o relógio é como um grande maestro a conduzir a orquestra mundial dos humanos, que se apressam e, frise-se, que não é permitido a nenhum de nós desafinar… ensaie-se cada vez mais! Nossa vida inteira está di-a-ria-men-te relogizada…
E de repente, “não mais que de repente”9, ficamos todos, em escala mundial, e isso é que é globalização!, “quarentenados”: há tempo de sobra (tempo) dentro de casa (espaço)! E descobrimos que não sabemos lidar com o tempo (sofremos medo do tempo): quando temos tempo, não atinamos o que fazer do tempo.
Num primeiro ímpeto muitos acodem à ideia de pôr em dia as coisas caseiras, e tome de mudar os móveis de lugar, pendurar quadros, fazer limpeza, arrumar armários, inventariar objetos guardados, fotografias, lembranças, separar, descartar, consertar, reformar, etc. Em alguns dias esse furor cessa. Outros mais afeitos às artes e às literaturas põem-se a ler, escrever, pintar, tocar (piano, violão, saxofone, bateria!) e depois de algum “tempo” mais esse outro episódio maníaco também declina. E então começa a se aproximar o pânico de não ter ou não saber o que fazer do tempo que sobra: há tempo de folga dentro do tempo – o dia teria bem mais do que 24 horas (tempo) e a distância para a geladeira é proporcionalmente cada vez mais curta (espaço) às avessas: quanto maior é o tempo a meu dispor, tanto mais encurta a tal distância… Bem, já preguei, pendurei, mudei, consertei, limpei, já li, já ouvi música (inclusive todas as óperas de Wagner), já devorei tudo que atravessava à frente de minha boca, e o tempo insiste em se espichar, como um gato de quilométricos e flexíveis músculos. Talvez fosse bom recorrer a um desses muitos e presentíssimos anúncios de atendimento psíquico à distância…10 (espaço), já que há tempo (de relógio)…
O fato é que procurei tudo que me foi possível de fora para dentro a fim de ocupar o meu tempo de dentro para fora. Mas aquilo tudo que está fora não necessariamente tem tempo ou está no tempo, ao passo que em tudo que transcorre dentro de mim eu tenho uma capacidade quase que inata e interminável de me ordenar numa linearidade temporal, pois é nela que me explico e sei de mim… E aí se estabelece um autêntico jogo imanência/transcendência que eu preciso saber dosar.
Saber dosar para, tentemos isso, “desrelogizar” minha “existência” e não contaminar de ponteiros minha autenticidade / singularidade, que não é o mesmo que minha individualidade. Se é verdade que no bojo de uma situação-limite, com a explicitação escancarada de seu fracasso intrínseco, surge-me, por mais paradoxal que seja, a oportunidade da liberdade, por que não nos libertarmos dessas toneladas de entulho com que nos vamos soterrando na intensa “strugle for existence”11 do egoísmo e na busca da sobrevivência a qualquer preço e a qualquer tempo-espaço12, e propor uma nova forma de ser, viver e conviver, escapando do relógio e adentrando uma dimensão mais existencial do tempo? E isso é puro filosofar…
O segundo também bom exemplo – e que salta aos olhos – é que na absoluta excepcionalidade (exceção relativa, posto que a possibilidade estava desde sempre presente nas leis da biologia) de uma situação-limite coletiva, como a que nos afeta, eu dependo completamente do outro e ele de mim; nenhum de nós se livrará do risco por meio de uma ação unilateral: ou ambos fazemos o que deve ser feito em termos de prevenção, ou ambos estaremos sujeitos à doença e suas mazelas – aqui não há meio termo! Ora, isso implica em um sentimento, uma visão e uma prática de completa percepção e respeito à alteridade, à existência-fenômeno-mistério do outro, que não pode ser apreendido e normalizado; implica em limitação do ego e do próprio. Preciso ajudar e ser ajudado. Precisamos, todos, e vem novamente o filosofar, romper com a tradição filosófica calcada no ego e substituí-la, ou pelos menos equalizá-la, por uma “filosofia do outro”, do humanismo do outro, da face do outro, ao estilo do que Emmanuel Levinas apropriadamente insistiu em desenvolver em sua obra. Considere-se, com muita determinação, esta tentativa filosófica de mudança de paradigma. E considere-se, ainda, a possibilidade de retomada de princípios da filosofia cristã no que concerne ao senso de comunidade e comunhão.
Em resumo, pode haver alguma chance de (i) com sabedoria maior na percepção/emprego do tempo (a contemplação, o vasculhamento interior para descoberta e posse de algum “sagrado” e sua conexão com o exterior, a simplicidade) e, simultaneamente, (ii) com uma prática de nivelamento entre a minha importância (recalibragem de narcisismos) e a sempre estatuída importância do outro, produzirmos um novo horizonte para a humanidade, um estado revolucionário nascente de bem-estar coletivo, uma utopia que não brote do medo, mas da capacidade de um fazer conjunto. Por que não? Por quê?…
Algumas Notas e Referências
[1] Karl Theodor Jaspers (Alemanha, 1883-1969) originalmente psiquiatra e depois filósofo, seu pensamento foi marcado por seu conhecimento de psicopatologia e foi muito importante para o existencialismo. Sua filosofia da existência molda o âmbito no qual se dá todo o saber e todo o descobrimento possível. A existência é o oposto de um “objeto”, pois pode ser entendida como “o que é para si encaminhada”. O problema é como pensar a existência sem torná-la objeto. Ele buscou descrever os vínculos entre existência e razão, e para isso pesquisou muito o conceito de verdade, a qual é uma espécie de ambiente que envolve todo o conhecimento. Exaltou Kierkegaard e Nietzsche como filósofos interessados em explorar a condição humana a partir da perspectiva da luta do indivíduo com ela. A filosofia deveria se ocupar de conduzir o indivíduo rumo à autodescoberta e a um modelo de vida autêntico (autenticidade é uma palavra-chave; Jaspers usa autêntico, ao lado do termo inautêntico, simétrico e oposto, para indicar o ser que é próprio do homem, em contraposição à perda de si mesmo ou de sua própria natureza, que é a inautenticidade. Cf. Nicolas Abbagnano. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 95. Verbete “autêntico”) em vez de despender um esforço vão em busca de objetividade e sistematização. Afirmava que isso envolve enfrentarmos nossa finitude e abraçarmos o “transcendente”. [Cf. Stephen Law. Guia ilustrado Zahar – Filosofia. (Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão técnica Danilo Marcondes.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar editores, 2008. p. 325.]
[2] Aristóteles chamou de espanto ou a capacidade de se espantar, de se surpreender, e disso elaborar consciente e ativamente uma busca por explicações; Heidegger chamou de angústia, Sartre de báusea…
[3] Martin Heidegger. Que é isto – A Filosofia? In: Martin Heidegger, Conferências e escritos filosóficos. [Tradução Ernildo Stein.] Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. p. 37.
[4] “O cogito ergo sum revela de modo evidente, segundo Descartes, a substância pensante, isto é, revela ‘um ser, cuja existência nos é mais conhecida do que a dos outros seres, e modo que pode servir como princípio para conhecê-los’ “. Conforme Nicolas Abbagnano. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 30. Verbete “Alma”.
O latim Cogito ergo sum = Penso logo sou (ou logo existo).
Ver: René Descartes. Discurso do Método & Ensaios. [Organizador: Pablo Ruben Mariconda.] São Paulo: Editora da Unesp, 2018. 525 p.
http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788539307555,discurso-do-metodo-ensaios
(O ano da primeira publicação, em francês, foi 1637.)
[5] Larissa Garrido Benetti. O fracasso no pensamento de Karl Jaspers. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 2011. p. 64. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9828/1/2011_LarissaGarridoBenetti.pdf. Acesso feito em: 25/março/2020.
[6] Karl Jaspers. Iniciação filosófica. 9ª. ed.[Tradução Manuela Pinto dos Santos.] Coleção Filosofia & Ensaios. Lisboa: Guimarães Editores, 1998. p. 42.
[7] Charles Taylor. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. 3ª. ed. São Paulo: Loyola, 2011.
[8] Michel Foucault. Vigiar e punir – nascimento da prisão.42ª ed. [Tradução Raquel Ramalhete.] Petrópolis RJ: Vozes, 2014. 302 p.
https://www.livrariavozes.com.br/vigiar-e-punir8532605087/p
[9] Alusão ao belo soneto do poeta e diplomata Vinícius de Moraes, tão imensamente pertinente aos do agora, inclusive em seu espanto:
Soneto de separação
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Oceano Atlântico, a bordo do Highland Patriot, a caminho da Inglaterra, setembro de 1938. (http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/soneto-de-separacao )
[10] Mesmo nesse aspecto há-de se ter algum critério, e não é fácil que isso ocorra, afinal ninguém é obrigado a ser especialista naquilo que busca, precisa ou deseja. Por sorte, pensadores fazem alertas, como Luc Ferry: “A busca da felicidade e da serenidade andam juntas, e eu não consigo ver como distingui-las no discurso da moda depois que os psicólogos americanos inventaram a psicologia positiva e as teorias de desenvolvimento pessoal. Não se fala de outra coisa na imprensa pop e os livros a respeito estão na lista dos mais vendidos.” “Os mercadores da felicidade apoiam-se em três temas: a ‘autoajuda’, também chamada de ‘autogestão emocional’ ou ‘autoecologia’, a busca da autenticidade e a busca pela autorrealização. Tudo é embalado num discurso pseudocientífico que pretende não apenas mensurar, mas também criar a felicidade.”
(“Como não buscar a felicidade, segundo Luc Ferry” – entrevista ao “Nexo” / João P. Charleaux, 31/julho/2019:
[11] A encarniçada luta pela sobrevivência a que os seres vivos da natureza, inclusive humanos, estão sujeitados, conforme apresentada sob diversas facetas por autores como
Thomas Malthus, Benjamin Franklin, Charles Darwin, Thomas H. Huxley, Alfred Wallace, e outros.
[12] Tempos, por exemplo, de personal branding, você como “sua” marca, como sua S/A; você como um produto empresarial, mercantilizável, tanto quanto o rol de suas emoções…