Da gripe espanhola à pulsão de morte
11 de dezembro de 2020O Advogado do Diabo
13 de junho de 2022Por Mariana Abdel[1]
“Não quero mais policiais, médicos, jalecos e uniformes, não quero nada” (Marina).
“Uma mulher fantástica” gira em torno de Marina, uma mulher trans, garçonete e cantora, que presencia a morte súbita de seu namorado, 20 anos mais velho, Orlando, causada por um aneurisma.
O filme começa com uma cena bonita, em que Marina canta e Orlando a observa, em seguida comemoram seu aniversário em um restaurante. Em um clima festivo, Orlando a presenteia com uma viagem para Foz de Iguaçu e diz “É uma das sete maravilhas do mundo”. Entre conversas, risadas e beijos, é nítido para quem assiste o quanto se gostam e o quanto estão felizes.
Nessa mesma noite, durante a madrugada, Orlando passa mal. Marina, apreensiva, o leva para o hospital e ele não resiste. Ela liga para o irmão de Orlando que a orienta a sair de lá sob a justificativa de que ele irá cuidar de tudo. Confusa e triste, Marina sai correndo, porém resolve voltar. A partir desse momento, começa a enfrentar uma série de situações violentas por parte dos familiares de Orlando e até mesmo da justiça. Marina é perseguida por uma detetive que desconfia e insinua que ela teria agredido-o, uma vez que Orlando estava machucado, pois caiu da escada.
Essa personagem me tocou bastante pela sua sensibilidade, força, inteligência e principalmente pela sua verdade. Há uma enorme dissonância entre Marina e os outros personagens que a atacam.
Pensando nisso, antes de prosseguir na descrição do filme, gostaria de apresentar, resumidamente, um conceito de Psicanálise, desenvolvido por Winnicott, chamado “viver criativo”. Para Winnicott, a capacidade de existir não é dada ao nascer, é uma conquista que depende de diversos fatores, saúde não é somente ausência de doenças, mas algo mais complexo e está associado a capacidade criativa. O ser humano tem uma tendência inata ao amadurecimento, se tudo correr bem vai aos poucos realizando suas potencialidades, afirma Outeiral (2010).
O desenvolvimento da criatividade é fundamental nesse processo de constituição de si mesmo. O ser-humano como um sujeito saudável, com um si-mesmo bem integrado, que se relaciona com o meio externo de forma própria, e não simplesmente respondendo aos estímulos, teve um bom desenvolvimento de sua criatividade do decorrer do amadurecimento.
Winnicott (1971) diz que através de um processo de crescimento extremamente complexo, geneticamente determinado, e da interação do crescimento individual com fatores externos que tendem a ser positivamente facilitadores, a criança torna-se um adulto saudável, descobrindo-se equipada com alguma capacidade para ver tudo de um modo novo, para ser criativa em todos os detalhes do viver.
A criatividade é, portanto, a manutenção através da vida de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo.
A vida de um indivíduo saudável é caracterizada por medos, sentimentos conflitivos, dúvidas, frustrações, tanto quanto por características positivas. O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua própria vida, assumindo responsabilidade pela ação ou pela inatividade, e sejam capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas. Em outras palavras, pode-se dizer que o indivíduo emergiu da dependência para a independência, ou autonomia.
Não sabemos sobre a história pregressa de Marina, mas podemos perceber claramente sua capacidade criativa e sua riqueza psíquica. Uma passagem muito ilustrativa disso, é sua luta pelo direito de se despedir. Todos tentam impedi-la, não informam o local do funeral e pedem que ela não vá “em respeito aos valores da família”. O irmão de Orlando, que se mostra, aparentemente, mais sensível à dor de Marina, lhe propõe a oferta de doar uma pequena parte das cinzas do falecido, soando, para mim, como uma tentativa de barganha para que Marina não vá ao funeral, nem ao velório. Ela nega a oferta das cinzas-migalhas e repete que seu único desejo é se despedir.
Apesar de tantos empecilhos, Marina consegue ir ao local, é hostilizada, depois perseguida pelo filho de Orlando e dois homens, que na tentativa de conter sua força e o poder de suas palavras, a xingam e colocam durex em sua boca. Apesar de tanto sofrimento, sua dor é transformada em ódio, e parece ser uma mola que a impulsiona a lutar com mais ainda mais vigor. Marina consegue entrar no crematório e finalmente se despede de Orlando. Seu luto agora tem lugar e é simbolizado por suas lágrimas. Essa não é a única batalha de Marina, ela também luta incessantemente pela cachorra Diabla (que pertencia à ela e à Orlando).
Tentam lhe tirar tudo. Expulsam-na da casa que vivia com Orlando, não permitem que vá aos rituais de despedida, tentam incriminá-la e negar quem ela é (se referindo a ela com pronomes masculinos). Reivindicam dinheiro, se sentem incomodados por não entenderem “o que é” Marina, se julgam superiores por serem “normais”. Parece tudo que lembra vida, lhes ameaçam.
Segundo Ciccone (2013), para Winnicott, o viver criativo refere-se aquilo que fazemos, e ao fazermos, nos sentimos vivos, sentimos que estamos expressando nosso verdadeiro self, e é isso que nos fortalece.
É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o mundo em todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar se ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à ideia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida. Muitos indivíduos não experimentaram suficientemente o viver criativo para reconhecer, de maneira totalizante, a forma não criativa pela qual estão vivendo, como se estivessem presos à criatividade de outro, ou de uma máquina, afirma Winnicott (1975).
Diante de tamanha pobreza psíquica desses personagens, fica ainda mais em evidência a capacidade criativa e saudável de Marina. Ela luta pelo que resta de vida e de afeto dessa trama, ou seja, seus sentimentos e sua cachorra.
O filme termina com Marina na companhia de Diabla. Nua, coloca um espelho em seu colo e se vê.
Marina se enxerga e sabe que sua existência não se restringe aos seus órgãos genitais. Em seguida, ela se apresenta em um recital, cantando com muita emoção, música lírica, que tanto sonhara.
Diante de tamanha violência é de se esperar que qualquer pessoa, por mais saudável que seja, fique prostrada, o que não significaria, necessariamente, falta de saúde psíquica. No entanto, encantei-me com Marina, por sua força de lutar, e sua perspicácia ao adotar saídas criativas apesar de todo vendaval (como a cena em que anda contra o vento) engrossado de golpes baixos e becos sem saídas. Encantei-me pela inteligência e beleza de suas falas, que infelizmente não se tornam diálogos. São inaudíveis para os outros personagens. Encantei-me, também, por sua humanidade, por sua raiva. Como a cena em que ela se revolta, sobe no carro e grita, pedindo pela sua cachorra. Afinal, só falando a língua deles, ela consegue ser ouvida e atendida.
Segundo Ciccone, ao falar do viver criativo, Essa é a cor e o tom que podemos dar às nossas vidas, um colorido que pede que mantenhamos viva a loucura sã da nossa infância.
“Experimentar o viver criativo é sempre mais importante do que se sair bem” (Winnicott, 1986)
Referências bibliográficas
- CICCONE, Soraia Dias. Criatividade na obra de D. W. Winnicott. 2013
- OUTEIRAL, José Ottoni. Transicionalidade e criatividade: rabiscos sobre o viver criativo. J. psicanal. [online]. 2010, vol.43, n.78
- Winnicott, (1971) O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975 Winnicott, (1986) Tudo Começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes, 1999
[1] Psicóloga e psicanalista, co-autora do livro recém lançado “Mulheres no Cinema: Uma análise do feminino” (organizado por Ana Carolina Nucci, editora APMC).