EDUCADORES PODEM PROMOVER E PROTEGER A QUALIDADE DE VIDA E A VIDA?
14 de outubro de 2018De qual droga estamos falando? Conversando com o Prof. Nery
21 de outubro de 2018Maria José Siqueira
Psicóloga, Especialista em Saúde Pública e Educadora Social
A análise feita história da prevenção no Brasil, a clareza das contradições explicitadas e a certeza de que novos caminhos devem ser buscados foram fatos que me mobilizaram na busca de alternativas para o desenvolvimento de programas preventivos e a ressignificação da abordagem preventiva centrada na Valorização da Vida.
O termo, embora desgastado, parece-me um ancoradouro potencialmente capaz de dar sustentação aos princípios e metodologia de uma “nova” (nada é novo, tudo é transformado) abordagem preventiva.
Essa abordagem é resultado de muitas experiências, bem e malsucedidas, da certeza de que algumas contradições podem ser eliminadas ou minimizadas e, principalmente, da certeza de que se o uso indevido de drogas é o reflexo de toda uma conjuntura pessoal e social, a prevenção deve ser voltada prioritariamente a ela. Atuar nas causas terá condições de otimizar seus efeitos.
Muito se fala na necessidade de tornar a Pessoa alvo das ações preventivas, mas o que continua em foco é a pessoa que usa droga, como se essa característica particular pudesse resumir o que ela é. É preciso entender que a pessoa que usa droga é também a que tem potencial para amar, para produzir, para transformar e que todo esse potencial não pode ser suprimido em função de um único aspecto – o uso de drogas – principalmente quando ele é sabidamente reflexo de muitas carências. Assumir que “dizer não à droga”, mas agora “ao seu uso”, continua direcionando os programas e que a Pessoa precisa ser redimensionada (vista na sua integralidade) será um avanço efetivo.
Mudar esse foco é hoje, a meu ver, o grande salto que devemos dar e só seremos bem sucedidos, se, realmente, entendermos que o uso indevido de drogas é mais um entre tantos outros riscos a que estamos expostos na vida. A incompetência ao lidar com a regulação do desejo de prazer e de poder é o maior dos riscos, portanto, se voltarmos nossa atenção para construir e estimular essa habilidade estaremos também prevenindo o uso indevido de drogas. Desenvolver habilidades que favoreçam aumento no autoconhecimento, na autoestima, a convivência com o diferente, a responsabilização pelas escolhas feitas e atitudes tomadas, o entendimento que a vida não é feita apenas de sins e a clareza de que o outro faz parte de nossa própria constituição são aspectos importantíssimos e que devem ser desenvolvidas em toda proposta de ação preventiva.
Acredito que um programa ancorado na Valorização da Vida, com princípios voltados para o desenvolvimento pessoal e social do adolescente e apoiado em uma metodologia que favoreça a problematização, a explicitação e elaboração das contradições e o surgimento de compromissos éticos e políticos certamente aumentará a assertividade dos adolescentes, aumentará a sua vinculação à vida e, portanto, os tornará mais resistentes a uma relação problemática com drogas, com sexo, com a violência, e a tantos outros riscos.
PRINCÍPIOS
- > A Valorização da Vida deve ser discutida e ressignificada para que possa gerar ideias e ações que auxiliem no processo de construção de pessoas mais autônomas, assertivas, solidárias, éticas e transformadoras.
Ressignificar a expressão Valorização da Vida é transposição de todo um discurso politicamente correto para uma prática socialmente comprometida. Usar o termo sem ressignificá-lo é ignorar as contradições já explicitadas na história da prevenção e perpetuá-las, acentuando assim a descrença e a desconfiança em relação às intervenções direcionadas ao desenvolvimento mais pleno do adolescente e à sua vinculação com a vida.
- >Desenvolver um Programa de Valorização da Vida requer competência específica e uma crença profunda na liberdade de opção e no desenvolvimento da assertividade das pessoas, no caso dos adolescentes.
O rompimento com os antigos paradigmas, especialmente os que negam a liberdade de opção e crença no potencial transformador dos adolescentes, é indispensável, caso contrário um novo discurso e algumas novas técnicas estarão maquiando crenças e práticas já avaliadas e consideradas inadequadas aos fins propostos.
- > As ações de Valorização da Vida devem ser planejadas, desenvolvidas e avaliadas conjuntamente pela escola, famílias e representantes da comunidade.
A escola isoladamente não é, potencialmente, capaz de identificar e minimizar fatores de risco e de identificar, construir e fortalecer fatores de proteção na comunidade e pelo poder público.
A ação isolada da escola fragiliza o potencial transformador oriundo da articulação de vários segmentos sociais com o poder público, portanto o envolvimento da comunidade no planejamento, execução e avaliação deve fazer parte dos objetivos e metas de todo programa de Valorização da Vida.
Quando o processo de planejamento é participativo as responsabilidades são partilhadas, o envolvimento é maior e os compromissos têm maiores possibilidades de serem assumidos e compridos.
- > O adolescente deve ser pensado como destinatário e como agente das ações a serem desenvolvidas.
É evidente que quando falo em participação do adolescente não estou pensando no “adolescente multiplicador”, aquele que tem como função específica repassar informações a seus pares, mas sim àquele que aprende a aprender e que transforma o seu aprendizado em instrumento para o seu desenvolvimento e para a melhoria da qualidade de vida do seu grupo e da sua comunidade. Ser agente é assumir compromissos e parcerias com outros agentes em prol do bem comum.
Esse princípio, uma vez introjetado e vivenciado, é um fator de proteção muito potente pois, não só desenvolve a autoestima positiva, como também possibilita ao adolescente exercitar-se em alguns aspectos da vida adulta.
Entretanto o adulto referência tem papel relevante nesse processo, pois o adolescente só deve assumir a responsabilidade pela experimentação do papel de adulto e não assumir as responsabilidades do adulto, mas não deve ser tutelado, pois é capaz de assumir responsabilidades compatíveis com o seu grau de maturidade e conhecimento. Nessa concepção de programa, adulto e adolescente devem ser parceiros, cada um cumprindo a sua função e desempenhando o seu papel, seu grau de desenvolvimento.
O desenvolvimento de programas voltados para a Valorização da Vida exige compromissos éticos e políticos na busca de melhores condições de vida para, particularmente, crianças e adolescentes.
Por melhores condições de vida compreende-se possibilidade para Manter-se (alimentação, habitação, acesso à saúde, educação e trabalho); Realizar-se (realizar-se afetivamente, ter acesso à educação de qualidade, possibilidades de lazer, trabalho dignamente remunerado, escolher sua profissão); Expandir-se (aperfeiçoar-se na profissão, na participação social, na possibilidade de ascensão e nas demais competências que tornam o adolescente ser de direitos e deveres).
A identificação dos fatores de risco que impossibilitem qualquer desses aspectos é também risco para o uso indevido de drogas.
O adolescente pode e deve ser estimulado a assumir compromissos éticos e políticos (que ultrapassem a militância partidária) com relação às transformações identificadas como prioritárias em algum momento de sua vida pessoal ou comunitária. Para que esses compromissos não se transformem em discurso apenas e para que ele aprenda a identificar problemas (riscos) e buscar soluções para os mesmos, o jovem precisa ter garantido seu espaço de participação efetiva também nos processos decisórios. Entretanto, não significa que uma vez identificados os riscos e as possibilidades de eliminação ou minimização, a solução seja responsabilidade exclusiva do adolescente, mas sim que ele deve também comprometer-se na busca de soluções e encaminhamento das mesmas.
Para que o adolescente possa comprometer-se com princípios éticos e políticos é indispensável que a escola e os adultos referência (que o apoiam) já tenham, anteriormente, assumido esses compromissos.
- > As ações de Valorização da Vida devem direcionar-se tanto para os aspectos do desenvolvimento do eu (competência pessoal), quanto do outro (competência social).
A orientação do desenvolvimento das competências pessoal e social deve ser compromisso dos adultos-referência (educadores-pais-orientadores) e meta do programa.
No desenvolvimento da competência pessoal é preciso incluir atividades que visem a aumentar a autoestima, a resistência à frustração, a assertividade, o autocuidado, a autorregulação e a criatividade do adolescente. A resistência à pressão de grupo e ao consumismo, o desenvolvimento da cooperação e solidariedade, e o respeito à natureza são temas que devem fazer parte do desenvolvimento da competência social, portanto devem constar dos objetivos e atividades do programa.
- > A metodologia escolhida deve possibilitar a construção do conhecimento ao mesmo tempo que deve colaborar com o desenvolvimento da autonomia, solidariedade, no respeito às diferenças e potencial transformador do adolescente.
Enquadra-se nessas exigências a metodologia participativa/problematizadora[1] que consegue estimular e manter o interesse, principalmente do adolescente.
Os temas devem ser colocados a partir de desafios ao adolescente para que ele, pela motivação, busque informações e novas possibilidades de tratar a questão.
A pedagogia de projetos, a aprendizagem por serviço, são também muito adequadas à percepção do sucesso das intervenções, pois, possibilitam a participação efetiva do adolescente desde a definição do programa até a avaliação final.
Outro aspecto importante dessa metodologia é o favorecimento da percepção dos avanços. O adolescente precisa sentir que é capaz de alcançar sucesso nas atividades que realiza e ao mesmo tempo identificar as transformações decorrentes de sua atuação.
Esses princípios, ao mesmo tempo que ressignificam um ancoradouro para a prevenção, aumentam também os desafios que a escola deverá assumir, pois tornam mais evidente as contradições, requerem transformações significativas, tanto em sua proposta – Político Pedagógica – quanto em sua dinâmica.
Os programas ancorados na concepção de Valorização da Vida exigem propostas práticas educacionais e pedagógicas coerentes com os seus princípios, o que, infelizmente não é tão comum. A instituição escola padece de uma incoerência crônica: oficialmente e no discurso se propõe a colaborar na construção de pessoas autônomas e solidárias e sua própria estrutura, mas, ao invés de estimular, bloqueia a autonomia e estimula a competição.
Construir um programa de Valorização da Vida requer, portanto, que a escola reveja sua estrutura e sua prática e isso quer dizer investimento a longo prazo, mudança de paradigmas, abertura para mudanças, investimento em parcerias com a comunidade e, principalmente, uma crença profunda na autonomia e assertividade dos jovens.
Só acreditando que eles são capazes de aprender a escolher, de serem mais assertivos, em todos os aspectos e que o papel do educador (pais, professores e educadores informais) é ser facilitador do processo de desenvolvimento pessoal e social dos jovens e não de ditadores de normas e informações, um programa de Valorização da Vida bem elaborado e assumido poderá ser desenvolvido com êxito e garantir ao jovem participação efetiva na construção do seu projeto de vida e da sua história.
Atualmente, os educadores começam a perceber e explicitar as contradições, tanto da instituição quando suas próprias, no desempenho do seu papel fundamental, que é “Educar para a Vida”. Assim, uma nova etapa da prevenção ao uso indevido de drogas e a tantos outros riscos aos quais o adolescente está exposto começa a se delinear.
Os desafios da educação são os desafios da prevenção hoje, e é preciso estruturar um discurso e uma prática transdisciplinar cujo conhecimento seja produto de uma construção conjunta entre educadores, alunos, famílias e comunidade. Para isso, tanto as informações quanto os valores que dão sustentação à concepção de pessoa autônoma, assertiva, solidária, produtiva e transformadora precisam ser ressignificados.
[1] Levar o grupo, por meio da problematização, a se relacionar de forma mais reflexiva com o conceito em questão, problematizando, apontando contradições, disponibilizando informações para que o conceito possa ser construído e reconstruído em novas bases.