Casa de Sigmund Freud em Příbor, República Tcheca
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16 de março de 2020Fausto Antonio de Azevedo
É sempre muito frequente, recorrente mesmo, que interessados na chamada “área psi”, profissionais, estudantes, inclusive pacientes, demonstrem curiosidade pelos termos técnicos que os terapeutas e autores empregam, e que parecem vir de uma outra e misteriosa língua… como, de fato, vêm. Palavras como Édipo, narcisismo, fobia, Eros, etc., despertam fascínio – e estão entre nós como estavam entre os que viviam na Grécia antiga! Assim, acredito que vale muito retomar a questão, apresentando a seguir uma tradução (não oficial) de artigo do psiquiatra Loukas Athanasiadis (publicado no BJ Psychiatric Bulletin), que, apesar de não tão recente, pela natureza do tema permanece atual e traz uma coletânea ampla do assunto, propiciando um caminho útil para os que desejarem se aprofundar em cada um dos aspectos destacados.
Mitologia grega e terminologia médica e psiquiátrica
Loukas Athanasiadis
Psychiatric Bulletin (1997), 21, 781-782
(Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/psychiatric-bulletin/article/greek-mythology-and-medical-and-psychiatric-terminology/0DFDE62AC200B402A09B0DF90994F1CE. Último acesso feito em 7/março/2020.)
Um grande número de termos em psiquiatria moderna, medicina e disciplinas relacionadas são originários do grego, incluindo patologia, esquizofrenia, oftalmologia, ginecologia, anatomia, farmacologia, biologia, hepatologia, homeopatia, alopatia e muitos outros. Também existem muitos termos originários de figuras da mitologia grega (ou das palavras gregas relacionadas a essas figuras) e acho que pode ser interessante dar uma olhada em algumas delas.
Psiquê significa “alma” em grego e ela deu seu nome a termos como psiquiatria (remédio da alma), psicologia etc. Psiquê era uma jovem mortal e Eros (“amor”, ele deu seu nome à erotomania etc.) por ela se apaixonou. A mãe de Eros, Afrodite, o proibira de se interessar por moças mortais. Ele desafiou a ordem da mãe e começou a olhar Psichê no escuro, enquanto ela não podia perguntar o nome dele nem olhar para o rosto dele. Quando ela o desobedeceu e acendeu uma lâmpada de azeite, Eros fugiu. Psiquê, em seguida, vagou em busca dele, e os dois acabaram por se unir, melhor ainda, ela se tornou imortal.
Afrodite era a deusa da beleza, filha de Diana e Júpiter, e surgiu da espuma do mar em Chipre. Ela era casada com o feio deus Hefesto e teve vários casos. Ela deu seu nome aos afrodisíacos, como Vênus (seu nome latino) às doenças venéreas.
Fobos (“medo” em grego), de cujo nome derivam as fobias, era outro filho de Afrodite. Oficialmente, ele era filho de Hefesto, no entanto, seu verdadeiro pai era Ares, o deus da guerra, a quem costumava acompanhar nas batalhas.
Hygeia (saúde) deu seu nome a termos como higiene e higiênico. Ela era filha do famoso médico Asclépio, deus da medicina.
Hímen ou Himeneu emprestou esse nome à membrana elástica da entrada da vagina é. Ele era filho de Dionísio* e Afrodite e deus do casamento.
Syrinx ou Siringe era uma linda ninfa que se transformou em um caniço quando o sátiro Pan a perseguiu e tentou estuprá-la. O ar que soava através do caniço produzia uma melodia melancólica e um instrumento musical recebeu o nome dela, a siringe ou flauta de Pã. A seringa usada nas injeções pode ter uma conexão.
Narciso deu seu nome ao narcisismo (amor-próprio extremo baseado em uma autoimagem idealizada). Ele era um jovem extremamente orgulhoso de sua beleza e indiferente às emoções daqueles que se apaixonavam por ele. Uma deusa o amaldiçoou a sentir o que é amar e não receber nada em troca. Em seguida ele se apaixonou por sua própria imagem ao ver seu reflexo na água de uma fonte e acreditou que essa imagem pertencia a um espírito. Toda vez que ele tentava abraçar a imagem, ela desaparecia e aparecia sem dizer uma palavra. No final, o desesperado Narciso morreu e foi transformado em uma flor que ainda leva seu nome.
Eco era uma jovem ninfa muito atraente que sempre quis ter a última palavra. Um dia, ela enganou a deusa Juno, que então a sentenciou a não poder falar, mas apenas responder, repetindo as últimas palavras da pessoa que falava com ela. Quando Eco se apaixonou por Narciso, ela foi incapaz de expressar seus sentimentos e só pôde repetir suas últimas palavras – o caso, é claro, durou muito pouco! Eco deu seu nome à ecolalia (repetição quase automática de palavras ou frases ouvidas) e ecopraxia (imitação involuntária dos movimentos de outras pessoas).
Priapismo é palavra que deriva do nome Príapo, deus do poder reprodutivo e da fertilidade e posteriormente foi considerado a principal divindade da lascívia e obscenidade.
Safo, pessoa real, era uma poetisa que escrevia poemas líricos sobre sexo e amor, provavelmente entre mulheres. Ela morava na ilha de Lesbos (Mitilene, a capital), que recebeu o nome do mítico Lesbos, filho de Lapithes. De Lesbos e Safo são derivadas as palavras lesbianismo e safismo.
Hipnos, que provavelmente era filho de Nix (Noite) e Erebus e irmão gêmeo de Tânato (Morte). O nome dele em grego significa “dormir”. Hipnose, fenômenos hipnagógicos**, etc. têm a mesma raiz.
Nix, deusa ou personificação da noite, também era mãe de Geras (velhice), de cujo nome se originam termos como medicina geriátrica.
Morfeu era um dos 1000 filhos de Hipnos. A droga morfina recebeu dele seu nome.
Mania era a personificação da loucura.
Lete (esquecimento) era filha de Eris e deu seu nome ao rio do esquecimento no mundo subterrâneo. O nome dela tem a mesma raiz que os termos letargia e letárgico.
Mnemosine era um titã, filha de Urano e Gaia e a personificação da memória. Amnésia, amnésico, etc. são termos relacionados.
Hebe era filha da deusa Hera, esposa de Heracles e personificação da juventude. A palavra hebe (adolescência) é a raiz do termo hebefrênico***.
Hermafrodito, outro filho de Afrodite, era um jovem muito bonito por quem a ninfa Salmacis se apaixonou. Um dia ele se despiu e mergulhou no lago em que Salmacis se encontrava. Quando ela quis abraçá-lo, Hermafrodito não gostou e tentou afastá-la. Ela então orou aos deuses para que seus corpos nunca se separassem. Isso acabou por acontecer e um ser hermafrodita nasceu.
Sátiros: deram seu nome à satiríase (desejo obsessivo insaciável de gratificação sexual). Eles eram metade homens (parte superior) e metade cabras (parte inferior) e tornaram-se famosos por sua lascívia e apetite sexual.
Édipo: o rei Laio, de Tebas, após um pronunciamento de um oráculo de que seu filho Édipo o mataria, ordenou que o recém-nascido fosse morto. No entanto, Édipo sobreviveu e anos depois se encontrou, discutiu e matou seu pai (sem conhecer sua identidade). Em seguida solucionou o enigma da Esfinge e se casou, sem saber, com sua mãe Jocasta, a rainha de Tebas. Quando descobriu o que havia acontecido (e que sua mãe se matara), ele cegou seus os olhos. Sua história foi contada em Édipo rei, Antígona e Édipo em Colono por Sófocles, e Sete contra Tebas por Ésquilo. Sigmund Freud nomeou seu famoso complexo em referência ao Édipo.
Electra: o complexo de Electra**** se refere ao apego erótico de uma filha a seu pai e recebeu o nome da filha de Agamenon e Clitemnestra. Electra convenceu seu irmão Orestes a matar sua mãe e seu amante Egisto, o qual já havia matado Agamenon.
Como se vê, geralmente há uma ressonância notável entre as características das figuras na mitologia grega e as condições e comportamentos que foram designados posteriormente por inspiração em seus nomes.
Leitura adicional:
GRIMAL. P. (1990) Um Dicionário Conciso de Mitologia Clássica, Londres: Blackwell.
LASS, A., KIREMIDJIAN, D. & GOLDSTEIN, R. (1987) Dicionário de alusão clássica e literária, Ware: Wordsworth.
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*Outras fontes apontam-no como filho de Apolo.
**Hipnagógico: que produz sono, sonífero.
***Hebefrênico: relativo a hebefrenia – conjunto de perturbações intelectuais que, por vezes, surge na puberdade; demência precoce.
****Na Psicologia Analítica emprega-se a expressão complexo de Electra, sugerida por Jung, como contrapartida feminina a complexo de Édipo, indicando o desejo da filha pelo pai. Freud, todavia, adotava a expressão complexo de Édipo em ambos os casos, sem distinção.
Por oportuno, recomendo: National Geographic. Guia visual da mitologia no mundo. Matthew Bullen et al. [Tradução:Mara Genova e Andreia Moroni.] São Paulo: Editora Abril, 2010. 480 p.
(FAA)