Filosofar na carona do corona
2 de abril de 2020Leibniz e o inconsciente antes de Freud
12 de abril de 2020O Poço1, O Banquete2 e seus Efeitos Colaterais
Quarta-feira, 1º de Abril, ano 2020, data mundialmente conhecida como o Dia da Mentira3, sendo sua “origem” creditada a uma brincadeira francesa no Reinado de Carlos IX4. Semana que precede o fim do Tempo de Quaresma, semelhanças à parte, talvez seja encerrada a Quarentena instaurada pelo Ministério da Saúde contra a Progressão Geográfica do Covid-19, vulgo coronavírus. Os dados5 são verídicos e corroboram a eficácia desta ação na redução do contágio. Certos de que, uma parcela da sociedade dentro de suas realidades e possibilidades foram temporariamente postas em resguardo com a prática labore do Home-office, medidas plausíveis e mais que esperadas por grandes líderes. Estaria surgindo um novo modelo de trabalho? Estamos aptos para aceitar esse convite, a fim de adentrar realmente a Nova Era Tecnológica dando espaço ao desconhecido?
Apesar de evitar novos contágios a limitação do convívio social trouxe à tona velhas perturbações e novas intempéries que foram recalcadas em tempos longínquos por nossas mentes ao inconsciente. Como: angústia, dor, medo, finitude; intensificam-se os acessos em sites de pesquisas na busca da possíveis prevenções e cura. Listas de tarefas, filmes, livros, convites/inclusões em grupos do WhatsApp, Facebook, aulas online, novos cursos com temas em comum “Gestão em Tempos de Crises”… Seria julgamento de minha parte interpretar que nós humanos não podemos mostrar nossas fraquezas, vulnerabilidades e preocupações diante desse vírus? Ao contrário, teríamos que e, somente, ocupar a totalidade do nosso tempo nesse incessante flerte com a Pílula da Felicidade? Mas o que é essa tal de Felicidade? Não seriam, justamente outros dispositivos para romper ainda mais nossos frágeis cristais, cindindo os limites da sanidade mental. Mesmo que sejamos sujeitos regidos pela falta, penso que esses excessos são disparates na condução a círculos viciosos, que enfraquecem as nossas vontades e liberdade de espírito, movidos por um livre-arbítrio. Será que chegou o Dia D. para a humanidade?
Nas palavras de Schirato:
E vamos fazer um exercício que é doloroso demais: o da humildade. É hora de ser humilde e falar: estou aqui e vou fazer tudo o que posso para poupar a mim e àqueles que amo. Mas o desfecho não depende de mim. É uma grande oportunidade de crescimento. Com toda a dor que esse momento traz, se apoderar da própria fragilidade, da noção de que o tempo passa, da limitação dos recursos, é um exercício de humildade fantástico.6
Nessa chuva torrencial dos “deveres impositivos” da sociedade On Demand do “Aqui e Agora”, somos constantemente induzidos e reduzidos a meros expectadores de nossas próprias vidas. Jamais, poderíamos fazer tudo que nos oferecem, mesmo que tivéssemos super poderes como o Super-Homem (ironicamente refiro-me à Clark Kent, DC Comics e não ao Super-Homem de Nietzsche). Enfim, me deparei com o filme “O Poço”, disponível no Streaming-Netflix. Para não ser estraga prazeres evitarei aqui, qualquer tipo de spoiler, apenas antecipo que qualifiquei a película.
Caro leitor, permita-me a ousadia de escrever que existem três tipos de pessoas; as conhecidas, não conhecidas e as totalmente desconhecidas. Entre os mais diversos relatos, comentários, críticas sobre o filme circulados nas mídias sociais, resolvi acrescentar ao debate minhas interpretações, usando breves referenciais da Filosofia, Psicanálise, Literatura e a Música, juntas numa única Plataforma.
Aviso de Spoiler, caso não tenha assistido sugiro pausar a leitura e voltar em aproximadamente 2 horas após o término do filme.
Quando vi aquela cena da Plataforma vasta de comida, logo reverberou-me a filosofia de Platão, na obra “O Banquete”. Mas, como cheguei nisso? E quais são as semelhanças entre o filme e esse tema tão estudado milenarmente? A resposta é breve, vem com três palavras: Eros, Philia e Ágape7 que são em minha opinião a vértebra do filme. Sendo instâncias de Amor intercaladas nas cenas dirigidas por Urrutia, indicado ao Prêmio Goya de Diretor Revelação8.
Proponho a aparição de Eros na cena que Goreng sonha que está transando com Miharu. Philia é protagonista quando Imoguiri divide os alimentos em prol do bem coletivo. Por fim, Ágape é o sacrifício que Goreng faz ao oferecer a Panacota para a menina, que até então esperávamos que fosse um menino, o filho perdido de Miharu, talvez o Novo Messias! Mas surge uma menina delicada em seus gestos; sequer poderia imaginar que na intacta Panacota teria sido encontrado um fio de cabelo que o Maitre, talvez “Administrador” percorreu a cozinha para averiguar quem era proprietário. Prevalecendo a máxima “O que os olhos não veem o coração não sente,” pausadamente a menina saboreia a sobremesa. Torna-se assim, a verdadeira mensagem, eis o Amor Afetivo de Ágape, subindo a Administração pela plataforma.
Foi em 1920, no texto intitulado “Além do Princípio do Prazer”9 que Freud correlacionou o conceito psicanalítico de Eros à Pulsão de Vida, interligando esses investimentos afetivos para a condução e sobrevivência dos humanos.
Voltando à película, listarei algumas possíveis cenas que sugerem a Pulsão de Vida de Goreng.
- Parar de fumar?
- Terminar a leitura do livro?
- Sair do poço após a estadia?
- Sobrevivência ao descer os andares com intuito de levar comida a todas as plataformas?
- Mostrar a verdadeira face do amor e dividir a comida dos níveis mais altos a mais baixo?
- Enfim, encontrar o filho de Miharu?
Adentrando no tema da Literatura, proponho voltarmos ao período escolar de maneira lúdica e fazer o seguinte exercício de ligar as colunas:
Nas palavras de Dom Quixote:
“Graças rendo ao céu pela mercê que me faz, pois tão depressa me põe diante ocasião de eu cumprir o que devo à minha profissão, e realizar os meus bons desejos. – Estas vozes solta-as (sem dúvida) algum ou alguma, que está carecendo do meu favor e ajuda.”10
Seria este o dever Goreng: sobreviver a cada silvo do alarme noticiando a mudança de plataforma? Suponho que seu destino esteja sendo obsequiado aos desejos de seguir a sua vida, como um sonhador acompanhado de seus fiéis amigos, o velho escudeiro Sancho Pança e seu Cavalo Rocinante na aventura frenética de encontrar a bela Dulcineia nesse simpósio11 moderno.
Neste momento, muitas perguntas estão aparecendo sobre quais serão os Propósitos e Valores que nós meros sujeitos fragilizados e amedrontados diante da letalidade desse vírus teremos que seguir a partir de agora.
Nada mais oportuno que o Tempo de Páscoa para propiciar a real passagem da tormenta, deixando-nos mais preparados para assumir essa Administração, como a missão de ampliar a ética para a Humanidade: que floresçam muitas “Miharus” que nos façam seres “Escolhidos” para emergir ao novo mundo após o Caos.
Conforme nosso Hino Nacional temos o lema:
“Brasil, um sonho intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce”
E de nossas sacadas, janelas, onde estivermos proponho cantarmos juntos:
Os sonhos vêm e os sonhos vão
E o resto é imperfeito
Dissestes que se tua voz
Tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira12
Para que o Covid-19 veja que:
“um filho teu não foge à luta
Nem teme, quem te adora, a própria morte”
Para finalizar utilizarei a frase de James Joyce, em Ulisses, sejamos “um passo de cada vez. Um pequeno espaço de tempo através de pequenos tempos de espaço”, diante das nossas necessidades, vontades e desejos para seguirmos em frente.
Comida13
Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer
Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comer
A gente quer comer
E quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer
Pra aliviar a dor
A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro
E felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro
E não pela metade
Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê? (De quê?)
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer
A gente não quer só comer
A gente quer comer
E quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer
Pra aliviar a dor
A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro
E felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro
E não pela metade
Diversão e arte
Para qualquer parte
Diversão, balé
Como a vida quer
Desejo, necessidade, vontade
Necessidade, desejo (é)
Necessidade, vontade (é)
Necessidade
Notas e Referências
[1] https://www.imdb.com/title/tt8228288/?ref_=vp_vi_tt
[2] Platão, 380 a.C.
[3] https://super.abril.com.br/historia/por-que-1o-de-abril-e-o-dia-da-mentira/
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_IX_de_Fran%C3%A7a
[6] https://www.insper.edu.br/noticias/saude-mental-cuidados-necessarios/
[7] https://www.youtube.com/watch?v=hJAzzERb-RY Veja em 0,44’
[8] https://www.premiosgoya.com/34-edicion/articulos/ver/galder-gaztelu-urrutia-obsesivamente-minucioso/
[9] Freud, 1920. Companhia das Letras; Edição: 1 (19 de março de 2010).
[10] http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/quixote1.html
[11] Em grego: sumpósion (Banquete)
[12] Há Tempos, Legião Urbana composição: Eduardo Dutra Villa Lobos / Marcelo Augusto Bonfa / Renato Manfredini Junior
[13] Comida, Titãs, composição: Arnaldo Augusto Nora Antunes Filho / Sergio De Britto Alvares Affonso / Marcelo Fromer