Uma mulher fantástica
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1 de julho de 2022Por Mariana Abdel
Esses dias revi esse clássico dos anos 90, e como sempre retratado no cinema, o Diabo é um ser divertido, atraente, inteligente, sarcástico, rico, desinibido, livre de culpa, destemido e sedutor. Ou seja, tudo que invejamos. Afinal, vamos admitir, o neurótico tem inveja do perverso.
Mas voltando ao filme, este, gira em torno de Kevin (um jovem advogado da Flórida que diz “nunca perder”) e John Milton (dono de uma poderosa empresa de advocacia em Nova York).
A primeira cena, é em um tribunal onde Kevin acaba defendendo um professor de matemática acusado de ter abusado de uma aluna adolescente. A princípio o advogado acredita que seu cliente é inocente, porém no decorrer do julgamento, ao ouvir o discurso da vítima, Kevin percebe que seu cliente fica excitado. Ele pede que haja um intervalo e parece se sentir muito incomodado e angustiado com o que descobre, se mostra irritado com seu cliente, o que nos dá a esperança de que Kevin fará justiça e defenderá a vítima. Porém, ao voltarem, Kevin se entrega à sua vaidade, e escolhe permanecer no posto de vencedor. Acaba coagindo a vítima, confundindo-a, e a humilhando na frente de todos. O que o faz vencer o caso e libertar seu cliente perverso.
Depois desse episódio, Kevin é convidado e seduzido por John Milton a trabalhar em sua empresa. O advogado muda-se com sua esposa para um apartamento de luxo em Nova York, cedido por Milton. Seu novo lar, enorme e vazio, fica no mesmo prédio de seu chefe e colegas de trabalho. O que já nos parece uma proposta um tanto esquisita.
No decorrer do dia-dia, Mary Ann (esposa de Kevin) vai se sentindo solitária e vazia, não se identifica com sua nova vida e suas novas colegas, tudo vai perdendo sentido, ela perde sua vitalidade, não sabe o que fazer com tanto tédio e futilidade.
Na primeira festa que vai com o marido, pede que ele não a deixe sozinha e ele assente. Mas em pouco tempo fura sua promessa, sendo deixado levar-se por propostas irrecusáveis de trabalho, e pela atração por uma colega que o deixa hipnotizado. Mary Ann fica à deriva e acaba sendo capturada por Milton. Ser, onipresente, que seduz tanto ela, quanto o marido. Ela volta pra casa e espera três horas por Kevin. Quando ele aparece, ela se enfurece e é ignorada. Seu marido é cada vez mais sugado por seu trabalho e por sua ambição, deixando claro, a partir de então, o que prioriza em sua vida.
À medida que Kevin se vende ao diabo-chefe, Mary Ann adoece. Milton, surpreendentemente, sugere a Kevin que deixe o novo caso de lado, e cuide de sua mulher. O advogado recusa e escolhe continuar no caso. Suas escolhas vão sendo conduzidas a um cenário de horror, até o ponto que Mary Ann adoece ao ser perseguida por fantasmas assustadores, representados por todos os colegas de trabalho do marido, que também são vizinhos de prédio. Kevin parece começar a se incomodar com o rumo que sua vida levou, interna Mary Ann em uma clínica psiquiátrica e testemunha seu suicidio. Nesse mesmo dia, sua mãe, uma mulher pastora e muito religiosa, confessa que seu pai é seu chefe Milton. Kevin se desespera (o que parece acender uma chama de humanidade dentro dele), vai atrás de Milton. e descobre o poder que ele tem sobre sua vida. Começa um longo diálogo com seu pai-chefe-diabo.
Kevin descobre que seu pai esteve com ele o tempo todo, lhe oferecendo muitas tentações, porém o advogado vai se dando conta de que ele mesmo é responsável por suas escolhas e por seu destino.
Deus (monoteísta e sobretudo cristão), segundo Freud, é uma imagem continuada e idealizada do pai, alguém que trará proteção contra o desamparo. Porém, é também alguém que introduzirá a lei, a moral e a culpa.
Mas o que acontece, quando seu pai é o diabo?
Milton acusa Deus de sadismo, e afirma diferenciar-se dele, dizendo:
“Pra quem você carrega todos esses tijolos? Deus? É isso? Deus? Vou te falar, deixe-me lhe dar uma pequena informação confidencial sobre Deus. Deus adora olhar. Ele é um brincalhão. Pense bem. Ele dá ao Homem instintos. Ele lhe dá esse extraordinário dom, e depois o que Ele faz? Eu juro, pra Seu próprio divertimento, Sua própria comédia privada cósmica dos erros. Ele coloca regras contraditórias. É a piada de todos os tempos. Olhe, mas não toque. Toque, mas não prove. Prove, mas não engula. E enquanto você pula de um pé pro outro, o que Ele faz? Ele ri pra caralho! Ele é um escroto! Ele é sádico! Ele é um proprietário ausente! Adorar isso? Nunca!”
Segundo Maciel¹ e Rocha, Freud, ao longo de sua obra, insiste na ideia de Deus enquanto um protótipo do pai da primeira infância. No livro O Futuro de uma Ilusão, Freud articula esta figura do pai idealizado e divinizado com a temática da ilusão. Esta, nos diz Freud, não é o mesmo que um erro nem um engano. Mas, sim, uma produção psíquica motivada pelo desejo. Portanto, é a força do desejo, consciente ou inconsciente, que motiva a produção da ilusão, a qual, por sua vez, gera e alimenta a crença na existência de um Deus Pai.
Seguindo esta mesma linha de reflexão, do mesmo modo que Deus é uma representação idealizada da figura do pai, o diabo seria a representação do ódio infantil por esse mesmo pai.
Se o Deus benevolente e justo é um substituto do pai, não é de admirar que também sua atitude hostil para com o pai, que é uma atitude de odiá-lo, temê-lo e fazer queixas contra ele, ganhe expressão na criação de Satã. Assim, o pai, segundo parece, é o protótipo individual tanto de Deus quanto do Demônio (Freud, 1923[1922]/1976k, p.110).
Dessa maneira, Deus é a idealização da imagem do pai que um dia muito amou e protegeu a criança, sendo por ela também amado; enquanto o diabo é o lado paterno que a criança odiou e que, ao mesmo tempo, imaginou que a odiava, por não permitir que ficasse com seu objeto amado. Daí o fato de encontrarmos, na maioria das religiões, uma figura que representa o mal, por quem os fiéis nutrem ódio e repulsa.
A cena final desse diálogo, o diabo-pai lhe oferece sua outra filha, que pra surpresa de Kevin é sua desejada colega de trabalho. Milton rompe com outra lei civilizatória, a do incesto. Seu filho, em um primeiro momento, cede ao seu desejo e a beija, porém em seguida interrompe o ato e se mata. Ao matar-se, mata o pai internalizado. Consegue destruir o todo poderoso, que ao se decompor, mistura-se ao filho.
Kevin volta à primeira cena do filme, no intervalo do julgamento de seu cliente pedófilo, e dessa vez, opta pela ética, desistindo de defendê-lo. O advogado parece acordar de um pesadelo e renascer. Beija sua mulher apaixonadamente, se sente feliz e vivo. Porém, no mesmo dia, é deixado levar-se novamente por sua vaidade, ou seja, por seu pai, que reaparece na figura de um jornalista com a proposta de deixá-lo famoso.
Pensei nesse filme não com a sugestão de uma lição moral, muito menos como um alerta para que fiquemos longe do Diabo ou dos pecados capitais. Mas, com a reflexão da difícil equação da vida adulta entre instintos, desejos, culpa, vaidade, amor e reconhecimento. Dilemas comuns a todos nós.
O mais difícil da vida não é só fazer escolhas, mas sustentá-las. Kevin cresceu sem conhecer seu pai. Ao mesmo tempo, cumpre a maldição de encontrá-lo e assim como o Édipo, comete parricídio e se liberta. Ganha uma nova vida. Mas o que fazer com essa liberdade? Como seguir a vida com a responsabilidade de mediar nossas pulsões, nos dar limite, não sucumbir aos excessos, de saber amar, e a difícil batalha de nos diferenciarmos de nossos pais, principalmente no caso de Kevin?
Referência Bibliográfica
Freud, S. (1976a). O futuro de uma ilusão (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1927).
MacielI;, K. e RochaII, Z. Dois discursos de Freud sobre a religião –Rev. Mal-Estar Subj. v.8 n.3 Fortaleza set. 2008.