GERAÇÃO DE FUTURO está chamando a atenção…
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4 de novembro de 2019O jornal Diário do Minho, Portugal, agora em 26 de outubro passado, por meio de Rui de Lemos, publicou a matéria “Amares exalta Sá de Miranda com entrega de prémio e medalha”, segundo a qual “A Câmara Municipal de Amares entregou, hoje, o Prémio Literário Francisco Sá de Miranda ao escritor Nuno Júdice e, a título póstumo, a Medalha de Mérito Municipal a Agostinho Domingues. A cerimónia decorreu na Casa da Tapada para exaltar o poeta e humanista que engrandece o concelho.” Nuno Júdice, de “A matéria do poema”, é autor de uma vasta obra em poesia, ensaio, teatro, ficção, e vencedor de muitos prêmios.
Amares é uma vila do Concelho de Amares, Distrito de Braga, no Norte de Portugal, e sub-região do Cávado. Tem cerca de 1500 habitantes e é sede de um município com 81,95 km² de área e 18 889 habitantes (2011). Em Amares viveu e morreu Sá de Miranda.
Sá de Miranda e sua esposa D. Briolanja de Azevedo surgem numa escritura de venda de uma propriedade assinada na Casa de Castro (freguesia de Carrazedo). Viveram na Casa da Tapada, de que ele foi o primeiro Senhor até sua morte, localizada na freguesia de Fiscal em Amares.
Francisco de Sá de Miranda nasceu em Coimbra, provavelmente a 28 de agosto de 1481, e era meio-irmão de nosso conhecido Mem de Sá. Frequentou a Universidade em Lisboa, onde fez o curso de Leis, alcançando o grau de doutor.
Em 1516, o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende publica 13 poesias do Doutor Francisco de Sá. Seus versos, como os dos trovadores de então, mostram o carácter do homem e a vivacidade e cultura do seu espírito.
Ele iniciou imitando poetas do Cancioneiro General de Hernan Castillo, (1511), glosando, em castelhano, os motes ou cantigas de Jorge Manrique e de Garcia Sanchez.
Manteve as formas tradicionais da redondilha, antes e depois de conhecer e aceitar a escola italiana, e de introduzir em Portugal o verso decassílabo (o soneto).
Sá de Miranda entendia que a poesia não se tratava de ocupação para ócios de intelectual ou de salões, como para os poetas que o antecederam, mas sim de missão sagrada. O poeta faz as vezes de um profeta: deve denunciar os vícios da sociedade, o abandono dos campos e a preocupação exagerada do luxo; deve propor a vida sadia no seio da “madre” natureza, a simplicidade e a felicidade dos lavradores.
Incorporou a poética renascentista; sua linguagem é sóbria, densa, trabalhada, hermética e, por vezes, muito dura. Apesar disto, trata-se, depois de Camões, do escritor português mais lido do século XVI.
Sá de Miranda nos legou uma importante obra (seus trabalhos digitalizados podem ser vistos em http://purl.pt/index/livro/aut/PT/97300.html – Biblioteca Nacional de Portugal), que foi publicada postumamente, em 1595. Influenciou escritores contemporâneos e posteriores, como Antônio Ferreira, Diogo Bernardes, Luís de Camões, Pero Andrade de Caminha, ou, mais recentemente, Gastão Cruz, Jorge de Sena e Ruy Belo, alguns textos destes autores denotando clara intertextualidade com os mirandinos, principalmente com o bem conhecido soneto “O Sol é grande, caem co’a calma as aves”.
O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.
Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!
O destaque que quero aqui trazer é por conta de o Sá de Miranda antecipar a temática dos conflitos do eu (e também do duplo!), de maneira um pouco semelhante ao que se dará posteriormente com o grande Fernando Pessoa, como nos versos da profunda e marcante cantiga “Comigo me desavim…”.
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor da gente fugia,
Antes que esta assi crecesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meo espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?
(“As obras do Doutor Francisco de Sá de Miranda”. Lisboa, Antonio Leite – mercador de livros, 1677. p. 294. http://purl.pt/844/5/l-3211-p_PDF/l-3211-p_PDF_24-C-R0150/l-3211-p_0000_rosto-346_t24-C-R0150.pdf.)
Edina Boniatti e Valdeci Batista de Melo Oliveira, no belo artigo “Com o duplo na lírica de Sá de Miranda” dizem, no resumo, que:
“O motivo do duplo anima o páthos da perplexidade e da estranheza na cantiga “Comigo me desavim”, do poeta português Francisco Sá de Miranda (1481-1558). Nesse poema, o insólito e hostil é parte desdobrada da mesma personalidade, arraigada no solo fértil do próprio self, por mais paradoxal que possa parecer. O sujeito lírico não apresenta as razões da divisão alienígena; sua ação consiste no enrodilhar-lhe em voltas de si mesmo, no afã de nomear o intruso residente em seu ego.”
(TODAS AS LETRAS N, volume 11, n. 2, 2009. editorarevistas.mackenzie.br › index.php › article › download.)
No “Comigo me desavim”, mágica e excelência da métrica, do ritmo, da rima e da dialética eu / não-eu / outro-eu, portanto forma e conteúdo exuberantes, o poeta, de modo contundente, põe à mostra toda a perplexidade de sermos o que somos, o antagonismo entre o percebido e o pressentido, entre o tido e o suposto, entre o estar e o imaginar, entre aceitação e resignada rebelião, entre um ser-que-tenho e um ser-que me- tem. No livro Teia, Guerino Domingos ensaia fazer um apanhado literário desta dita temática de conflitos do eu (e eu me permito acrescentar aos autores que ele cita, a Clarice Lispector com o seu “Se eu fosse eu…”).
Complementos
Comigo me desavim.
Sá de Miranda
Já Bocage não sou!…
Manuel Maria Barbosa du Bocage
Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio.
Sá-Carneiro
Não sou nada, / Nunca serei nada, / Não posso querer ser nada.
Fernando Pessoa
Sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta.
Mário de Andrade
Somos nada. E, no entanto, somos a
Experiência de ser – totalmente!
Morremos inconclusos sempre, sempre,
Embora sempre conclusivamente…
Se a morte é cabal, a vida não é:
A vida é falha e falsa simplesmente,
E independe de nós, existe em si,
Enquanto de nós a Morte é carente!
A morte me define, mas a vida,
Se muito, me sugere, me insinua…
A vida é caminho onde não tem rua,
Um sonho posto, vírgula perdida…
A morte é a gramática da existência:
Cabalmente formal na irreverência!
A “cantiga”, do Sá de Miranda, está gravada numa das paredes da estação do Metrô de Vila Madalena, em São Paulo, à Praça Américo Jacomino, 30, convidando a todos os que ali passam apressadamente, subindo e descendo escadas, para uma profunda reflexão, otimamente apropriada ao início de uma manhã de segunda-feira…
Para ouvir:
- “Comigo me desavim” – Fábio Malavoglia
http://culturafm.cmais.com.br/radiometropolis/lavra/sa-de-miranda-cantiga-comigo-me-desavim
Para ver e ouvir:
- “O sol é grande, caem co’a calma as aves” – Inês Jacques