Bitcoin, padre Leonardo Castellani, niilismo e depressão: o que pode haver de comum?
1 de fevereiro de 2018O sujeito na nova sociedade: nova ansiedade e novos terapeutas
3 de abril de 2018Herbert J. Freudenberger (1926-1999), psicólogo americano judeu de origem alemã, apresentou-nos, na década de 1970, um quadro patológico caracterizado por “(…) esgotamento físico e mental cuja causa está intimamente ligada à vida profissional”, que foi batizado como Síndrome de Burnout (do inglês to burn out = queimar por completo).
Especialistas reconhecem diversos degraus na evolução da síndrome, como: necessidade de se autoatestar sempre capaz, de fazer tudo sozinho e de imediato; desatenção às próprias necessidades; fuga aos conflitos pessoais, com mudança na escala de valores e possível somatização de energias então recalcadas; ensimesmamento, fuga de encontros sociais, atitudes agressivas; evitação de contatos pessoais diretos, preferindo intermediação por e-mails, recados…; sensação de vácuo, depressão e colapso físico e mental. A síndrome costuma se manifestar após um grau de esforço excessivo no trabalho (na intensidade e na duração), sem intervalos suficientes para recuperação.
Profissionais da área de saúde parecem mais suscetíveis à síndrome. Estudantes também, nos momentos de importantes exames (o que é curioso, posto que não se pode considerar o estudo como uma atividade profissional e regular). Outros profissionais sujeitados são: os de TI, os de transportes, controladores de tráfego aéreo, bancários, professores, policiais, etc.
É preciso olharmos para certas características marcantes da vida atual e que, por certo, plasmam essas diferentes funções acima, e outras, construindo um molho único que pode nos predispor ao referido mal, sinergizando-o, independentemente do tipo de exercício profissional.
Assim, destacaríamos uma palavra-chave para a questão: submissão. Submissão midiática, submissão tecnológica, autossubmissão. A tecnologia é a ideologia. Pelo braço tecnológico do hipercapitalismo, o nosso “chefe”, que é também um empregado, sempre, tem acesso e comando sobre nós a qualquer hora, em qualquer lugar onde se esteja (ele se tornou uma espécie de Big Brother – e penso aqui no romance distópico 1984, do inglês George Orwell, de 1949, e sua frase: Big Brother is Watching You): os espaços se confundem inseparavelmente agora, isto é, casa, lar, lazer, trabalho, passaram a ser um espaço único amalgamado na rede, nas redes. Por aí, como nem Hegel nem Nietzsche pensaram, vamos virando escravo e senhor ao mesmo tempo… Ademais, corremos! O tempo acelera-se, o tempo de nossas-coisas-a-fazer. Corremos, sem dúvida, e sabemos que não dará tempo… Correr sem fim parece ser a nova condição humana, o novo fator externo a nos determinar (bio)organicamente. MAS, o corpo, o corpóreo, ainda não se adaptou darwinianamente a tal exagerada demanda, e a insuficiência vai-se acumulando até explodir no dito corpo corpóreo como uma doença, um cansaço extenuante[1]. E vem a constatação tão rápida e imediatista quanto o vertiginoso fluir do próprio tempo: meu corpo é um fator limitante e, portanto, preciso turbiná-lo farmacologicamente. Consequências? Todas, as mais nefastas possíveis.
A articulista Eliane Brum diz:
Os cliques da internet tornaram-se os remos das antigas galés. Remem remem remem. Cliquem cliquem cliquem para não ficar para trás e morrer. Mas o presente, nessa velocidade, é um pretérito contínuo. Se a internet parece ter encolhido o mundo, e milhares de quilômetros podem ser reduzidos a um clique, como diz o clichê e alguns anúncios publicitários, nosso mundo interno ficou a oceanos de nós. Conectados ao planeta inteiro, estamos desconectados do eu e também do outro. Incapazes da alteridade, o outro se tornou alguém a ser destruído, bloqueado ou mesmo deletado.[2]
Vivemos uma época de pejotização do sujeito, e com esse dispositivo legal-burocrático nos transformamos em patrões e empregados de nós mesmos; nós somos nosso próprio panóptico benthamiano, nós somos a sociedade foucaultiana que vigia e pune. Metamorfoseei-me não em um besouro, mas num autômato denominado eu-empresa, eu-S/A, eu-agente-de-meu-destino, eu-servo-voluntário e servo-voluntário-de-mim[3], que precisa ser autossuficiente e vencedor. Nunca foi tão conveniente para o capitalismo dos tempos neoliberais. Assim, até a nosografia do burnout mudou, e não mais precisa da objetividade de uma empresa média ou grande, e um chefe-real-outra-pessoa, porque a sutileza inteligente do sistema fez com que eu incorporasse isso em mim, plenamente, numa espécie de formação de um novo superego, que agora cobra meu desempenho e performance profissionais e financeiros, tanto quanto minha capacidade (flex…) multitarefa.
O que opor a tal estado de coisas? Receitas relativamente simples, quase da vovó, como: a quebra. A quebra do ritmo: a contemplação, a introspecção, o lazer, o ócio, e, sobretudo, o contato com o outro, a conversa franca e desinteressada, sem tempo para acabar, embora acabe. Vale muito a menção a uma expressão, mineira talvez, corrente há tempos no Triângulo, que é: “conversar borracha…”
Quando a receitinha não opera, pode ocorrer, como se citou acima, a sobrevinda de uma depressão. Os deprimidos resultantes desse mecanismo de ação das normas produtivas e funcionais da atual sociedade são um dos efeitos colaterais da “sociedade do desempenho” (desempenho profissional em todos os aspectos, inclusive no universo dos esportes, das artes e por aí afora).
A depressão, que do ponto de vista cristão pode ser entendida como a tentação da desesperança, do ponto de vista de uma sociologia da sociedade atual pode ser enxergada, nas palavras do filósofo Byung-Chul-Han, como um cansaço de fazer e de poder que tipifica a sociedade que entende que tudo é possível, ou seja, o coroamento da crença iluminista numa cerimônia francamente positivista.
Para este filósofo, em seu livro Sociedade do cansaço[4]:
O sujeito de desempenho está submisso apenas a si mesmo. É nisso que ele se distingue do sujeito de obediência. A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos.
Como se sabe (ou pelo menos alguns sabem) contemplar é uma atitude civilizadora e o ócio, até mesmo um certo tédio, são instrumentos para a criação.[5] Sem a dimensão contemplativa estamos todos sujeitos a uma forma de hiperatividade produtiva fora de controle, que nos conduz, por certo, à barbárie. Estabelece-se uma dialética nociva (cuja síntese última, se não interrompido o vórtice, talvez seja a loucura e a morte) entre a hiperatividade aguda num extremo – e a hiperpassividade no outro. Ocorre lembrar aqui que mesmo as grandes óperas e as grandes peças de teatro, não à toa têm intervalos; são estruturadas em atos com lacunas temporais entre si, para que o espectador possa ter o tempo mínimo da sedimentação do apresentado e de sossego de seu espírito e não seja levado de turbilhão pelo volume das emoções e provocações.
Um ponto no qual a clínica psicanalítica deve concentrar sua atenção é a observação de Han de que a irritação pode, desvantajosamente, substituir a ira. Esta é um afeto que nos capacita a interromper um estado, fazendo com que outro se inicie. Hoje, cada vez mais, a ira cede lugar à irritação ou ao enervar-se, e estes não podem produzir nenhuma mudança decisiva. O mesmo Han, corajosamente, afirma que o computador, em que pese seu desempenho, é burro, porque não sabe hesitar… Se processa tudo a alta velocidade é porque está vazio de alteridade (e não pode haver ser humano vazio de alteridade; quem duvida, veja, por favor: Freud, Klein, Lacan, Levinas, etc.).
A essência do humano (se é que temos uma) e sua dimensão mais magnífica e criativa estão na capacidade de parar, de refluir, de observar, de contradizer, de desdizer, de reinventar (a si e a tudo), de voltar, de reconhecer (re-conhecer), de se arrepender, de hesitar para exitar. As religiões cristãs, bem como outras formas de pensar de características distintas, como o budismo, sabem que a contemplação é o caminho, a prática necessária para a graça. Não é por acaso…
Notas e referências
[1] A respeito, ver o livro muito oportuno do jovem filósofo sul-coreano Byung-Chul-HAN (1959), Sociedade do Cansaço, Editora Vozes, 2015. 80 p.
http://www.universovozes.com.br/livrariavozes/web/view/DetalheProdutoCommerce.aspx?ProdId=8532649963
[2] Eliane BRUM. Exaustos-e-correndo-e-dopados. Jornal El Dia – Brasil. 4/jul/2016.
https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/04/politica/1467642464_246482.html
Acessado em 10/fev/2018.
[3] Não se pode deixar de pensar no sempre tão atual livro de Étienne de La Boétie (1530-1563), o Discurso da servidão voluntária, que apesar de escrito há vários séculos (Séc. XVI). Os pontos da obra que devem ser destacados (conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89tienne_de_La_Bo%C3%A9tie) são:
- o poder que um só homem exerce sobre os outros é ilegítimo;
- a preferência pela república em detrimento da monarquia;
- as crenças religiosas são frequentemente usadas pelas monarquias para manter o povo sob sujeição e jugo;
- a liberdade e a igualdade de todos os homens na dimensão política são afirmadas;
- a força da opinião pública é apontada pela primeira vez na história;
- a repulsão a todas as formas de demagogia;
- a navegação pioneira pelo que depois se chamará psicologia de massas e o destaque à irracionalidade da servidão.
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. [Tradução de Casemiro Linarth.] São Paulo: Martin Claret, 2009. 80 p.
[4] HAN Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. [Tradução de Enio Paulo Giachini.] Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2015. p. 29.
[5] DE MASI, Domenico. O ócio criativo. São Paulo: Editora Sextante, 2000. 328 p.
http://www.esextante.com.br/livros/ocio-criativo-o/