São Vicente de Paulo, Charcot e Freud
16 de maio de 2017Crise, Crise, Crise
29 de maio de 2017“Os homens se consideram livres porque estão cônscios das suas volições e desejos, mas são ignorantes das causas pelas quais são conduzidos a querer e desejar.”
Baruch de Espinosa
O estilista Dudu Bertholini prestou um bonito depoimento ao portal Folha UOL, em 23 de maio passado, e, ao final do vídeo[1] (nos 4’22”), diz “Você é a única pessoa que não te deixa ser quem você é”. Será que é assim?
Quais escolhas temos nós?
Escolhemos onde, quando e como nascemos? Escolhemos quando, onde e como morreremos (aqui os suicidas, talvez, firam a regra)?
Escolhemos ganhar na loteria, ou se poderemos ter filhos, ou se não desenvolveremos dada doença genética, ou se não seremos assaltados ou atingidos por uma bala perdida?
Bem, tudo quanto nos acontece, mas que não adveio de nossa escolha clara e direta, é o que pode ser chamado de fatalidade, creditado a ela.
MITOLOGIA
Grécia
Para os antigos gregos as fatalidades eram representadas pelas três deusas Moiras (em grego: Μοῖραι = partes, porções ou repartidoras), fiandeiras, tecelãs do destino e da sorte, ajudadas em sua função fatal pelas keres (queres), cadelas de Hades, que, ao sobrevir o derradeiro momento de um mortal, tomam-lhe seu corpo para o conduzir a Pluto.
As moiras eram (como) três irmãs que determinavam o destino, tanto dos deuses quanto dos seres humanos; três mulheres lúgubres, responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da vida de todos os indivíduos. Durante o trabalho, as moiras faziam uso da Roda da Fortuna, o tear utilizado para se tecer os fios. As voltas da roda posicionam o fio do indivíduo em sua parte mais privilegiada (o topo) ou em sua parte menos desejável (o fundo), originando os períodos de boa ou má sorte de todos. As três deusas decidiam o destino individual dos antigos gregos e, quando se fez necessário, elas criaram Têmis, deusa responsável pela justiça, Nêmesis, encarregada da ética, e as Eríneas, que tinham o poder de punir os homens. Elas pertenciam à primeira geração divina (os deuses primordiais), e assim como Nix, eram domadoras de deusas e homens.
Moira, no singular, era inicialmente o destino. Na Ilíada, representava uma lei que pairava sobre deuses e homens, pois nem Zeus estava autorizado a transgredi-la sem interferir na harmonia cósmica. Na Odisseia aparecem as fiandeiras.
Hesíodo, na Teogonia[2], aponta duas origens para as Moiras:
- na primeira, são filhas de Nix (Noite) por partenogênese (não têm pai), versão adotada por Ésquilo (em as Eumênides), Anon e pelos hinos órficos:
Noite pariu hediondo Lote, Sorte negra
e Morte, pariu Sono e pariu a grei de Sonhos.
A seguir, Escárnio e Miséria cheia de dor.
Com nenhum conúbio, divina, pariu-os Noite trevosa.
As Hespérides que vigiam, além do ínclito Oceano,
belas maçãs de ouro e as árvores frutiferantes
pariu; e as Partes [Moiras] e as Sortes [Queres] que punem sem dó:
Fiandeira [Cloto], Distributriz [Láquesis] e Inflexível [Átropos], que aos mortais
tão logo nascidos dão os haveres de bem e de mal,
elas perseguem transgressões de homens e Deuses;
e jamais repousam as Deusas da terrível cólera
até que dêm com o olho malígno naquele que erra.
Pariu ainda Nêmesis, ruína dos perecíveis mortais,
a Noite funérea. Depois pariu Engano e Amor
e Velhice funesta e pariu Éris de ânimo cruel.[3]
- na segunda, conforme relato além, no mesmo poema, eram filhas de Zeus e Têmis, versão que é seguida pelo pseudo-Apolodoro:
Após, [Zeus] desposou Têmis luzente, que gerou as Horas,
Equidade [Eunomia], Justiça [Dike] e a Paz [Irene] viçosa,
que cuidam dos campos dos perecíveis mortais,
e as Partes [Moiras], a quem mais deu honra o sábio Zeus,
Fiandeira [Cloto], Distributriz [Láquesis] e Inflexível [Átropos], que atribuem
aos homens mortais os haveres de bem e de mal.[4]
Completando, Platão (em A República) as disse filhas de Ananke; Quinto Esmirneu as incluiu entre as entidades vindas do Caos; Licofronte as fez filhas de Oceano e Gaia, e o Tzetzes, erudito bizantino, as considerou filhas de Cronos e Nix. Sem citar sua ascendência, Píndaro as dá como presentes ao casamento de Zeus e Têmis, o que exclui que pudessem ser filhas de Têmis
Eram três as deusas:
- Cloto (Κλωθώ; klothó), “fiar” em grego; segurava o fuso e tecia o fio da vida de todos nos homens desde o nascimento. Em conjunto com Ilitia, Ártemis e Hécate, Cloto era deusa dos nascimentos e partos.
- Láquesis (Λάχεσις; láchesis), “sortear” em grego; puxava e enrolava o fio tecido. Agia junto com Tique, Pluto, Moros e outros, sorteando o quinhão de atribuições que se ganhava em vida, fixando a quantidade de vida que cabia a cada um;
- Átropos[5] (Ἄτροπος; átropos), “afastar” em grego; ela cortava o fio da vida. Com Tânato, Moros e as queres, determinava o fim da vida. A irremovível, cortava o fio, quando a vida que representava chegava ao fim.
São representadas como velhas ou como mulheres adultas de aspecto severo. Os poetas da antiguidade descreviam as moiras como donzelas de aspecto sinistro, de grandes dentes e longas unhas. Nas artes plásticas, ao contrário, aparecem representadas como lindas donzelas.
Havia outra fatalidade, a upermoira, sina atraída por uma pessoa a partir de um pecado, mas a upermoira poderia ser evitada.
Roma
As Moiras foram denominadas Parcas pelos romanos, economizar (como eufemismo), mas também parir. Parca era o quantum de felicidade, de infortúnio. Cada ser humano tinha sua Parca. Para os romanos, as divindades eram filhas de Júpiter e Têmis: Nona, Décima e Morta, que tinham respectivamente as funções de presidir a gestação e o nascimento, o crescimento e desenvolvimento, e o final da vida, a morte. Esse poder, todavia, era apenas sobre os humanos.
As três deusas deliberavam a vida humana e seu desenvolvimento, distribuindo a cada pessoa, no seu nascimento, uma parcela do bem e do mal, embora este pudesse ser acrescentado à própria vida por ação pessoal.
Nossos meses vieram do antigo calendário lunar romano. A gravidez humana dura nove luas. A Nona lua é a Parca que tece o fio da vida no útero materno. No calendário romano, Dezembro era o décimo mês, chamado de Decem, homenagem à deusa Décima, uma das Senhoras do Destino. A Décima lua é a do nascimento, o cordão umbilical é cortado e se inicia uma vida terrena. Morta é a Parca que preside a outra extremidade da vida, o fim que pode sobrevir a qualquer momento.
Além das Moiras a mitologia registra outras deusas finandeiras indoeuropeias, conhecidas como Nornas na mitologia nórdica, e a deusa báltica Laima e suas duas irmãs.
Nossas vidas
Junito Brandão diz[6]:
“As Moîras são a personificação do destino individual, da “parcela” que toca a cada um neste mundo. Originariamente, cada ser humano tinha a sua moîra, a saber, “sua parte, seu quinhão”, de vida, de felicidade, de desgraça. Personificada, Moîra se tornou uma divindade muito semelhante às Queres, sem, no entanto, participar do caráter violento, demoníaco e sanguinário que estas possuíam. Impessoal e inflexível, a Moîra é a projeção de uma lei que nem mesmo os deuses podem transgredir, sem colocar em perigo a ordem universal.”
Destarte, pode-se prevenir uma fatalidade? Não, quando muito, apenas, pode-se manejá-la, minimizar seus efeitos, posto que ela não depende de ações, comportamentos ou vontades pessoais.
É preciso que se distinga entre fatalidade e destino. Como se disse, a primeira é inevitável, todavia para o destino é diferente, porque ele pode ou não conter, a depender de nossos comportamentos, escolhas e determinações.
E não custa que recordemos, desde que se aceite a Teogonia greco-romana, que não só as Moiras terão influído em nossas vidas, na vida daquele que entendemos/pretendemos ser nosso eu, mas, desde a contribuição freudiana à pergunta “quem somos nós?”, temos ainda que acrescentar o papel do Inconsciente, e hoje em dia, sem dúvidas, o do sistema e das mídias. Se somos determinados, realmente, por tais imensas forças, qual fica sendo então – e de fato – o tamanho de nossa liberdade. Não posso deixar de invocar aqui a célebre frase atribuída a Henry Ford, em sua autobiografia[7] My life and work: “o carro é disponível em qualquer cor, contanto que seja preto”…
Fontes
http://pt.wikipedia.org/wiki/Moiras
https://pt.wikipedia.org/wiki/Roda_da_Fortuna
http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Moiras
Notas e Referências
[1] http://www1.folha.uol.com.br/tv/pensando-alto/2017/05/1886520-voce-e-a-unica-pessoa-que-nao-te-deixa-ser-quem-voce-e-diz-dudu-bertholini.shtml
[2] HESIODO. Teogonia – a origem dos deuses. [Tradutor: Jaa Torrano]. 6ª. ed. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2015. 168 p.
[3] Idem p. 113.
[4] Idem p. 151.
[5] O termo Atropos aparece no nome de uma borboleta de características interessantes: Acherontia atropos (Linnaeus 1758) (Borboleta-caveira ou da morte), grande mariposa, envergadura de 90 a 130 mm. Apresenta uma forma vaga de caveira desenhada em seu dorso. Ver: http://naturdata.com/Acherontia-atropos-7990.htm
A poetisa Olga Valéria assim se referiu a ela em dois sonetos de seu livro A brisa do coração:
Borboleta (I) (Acherontia atropos)
Véu e máscara negros, negra borboleta;
O enegrecido da morte entra pelos dentes
E sorri! Deus, parece-me a vida obsoleta!
Mas queria viver, estar por entre as gentes,
Ai quereria! O tempo ressequiu a teta,
E sobram sem destino amores pendentes.
Esses amores… Quem os quer que não se meta…
Meus amores: para onde foram entrementes?
Envolvo-me completa nesta gaze preta,
Deixo-me vazar nua em cores transparentes
Como aloucava amantes. Olho pela greta,
Panos na face, a moura febril dos poentes,
E vejo, asas enormes, negra, a borboleta,
Que de nós nos separa e nos une aos ausentes…
Acherontia
Tremeu as asas outra vez, mais uma:
A borboleta negra, mãe rainha,
Que mesmo longe sempre se avizinha,
Que mais se afasta, mais para cá ruma…
Na boca, a amarelada e grossa espuma;
Eis o super desfecho da vidinha:
Todo grande discurso acaba em rinha
Entre a baba convulsa e a voz que esfuma!
E uma ironia opõe-se ao final trágico:
Um leve e evanescente volitar,
Um vôo cambiante, um eclipsar,
Que zomba da Ciência – altivo e mágico!
Bate as asas a negra borboleta
Que do azul do céu leva à tumba preta!
[6] BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega – V. I. 19ª. ed. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2007. p. 230-1.
[7] FORD, Henry. My life and work. Garden City, New York: Doubleday, Page & Company, 1923. 31 p.
1 Comment
Caramba Fau,
muito bom, “qual o tamanho de nossa liberdade?”. Até que ponto um sujeito que se entende como livre é, de fato, livre … São tantas coisas que moldam nossas preferências, a mídia tem um poder real sob o comportamento das pessoas. Ela dita regras, gostos, e, acima de tudo, cria necessidades !
Eu preciso comprar um celuar novo …
será que Eu preciso comprar um celular novo?
sera que Eu preciso comprar um celular?
sera que Eu preciso comprar ?
sera que Eu preciso ?
sera que Eu ?
Perguntas, tantas perguntas, mas ai é assunto pra conversar numa boa rodada de cerveja!
abçs
Andre