Economia do bem estar: Qualidade de vida na terceira Idade | Tempo Análise
4 de agosto de 2018Otto Gross – o que tem de Freud e Jung nisso?
7 de agosto de 2018Há narrativas que nos enlaçam. Há temas que nos inspiram. “Manchester by the sea” ou “Manchester a beira-mar” é um filme tocante, complexo, que nos permite uma leitura sob uma série de ângulos: podemos discutir sobre o luto, mas também sobre a culpa, o erro, os limites, os encontros e desencontros da vida. Farei um recorte com maior enfoque na perda e na possibilidade (ou não) de fazer um luto por essa perda.
Ao pensar a respeito do tema, não foi somente o filme que atravessou o meu caminho e me tocou. A experiência clinica tem me ajudado a refletir sobre como as pessoas tem lidado, hoje, com o tempo, a espera, a dor, a imagem, a alteridade. São aspectos relacionados com a perda e o luto. Como atendo no consultório há mais de vinte anos e em instituições há mais de trinta, pude acompanhar um pouco as mudanças das demandas que tem chegado nos últimos anos. As dores pelas perdas sempre existiram, mas a angústia, o sentimento de desamparo, a depressão, surgem neste cenário vestidos com elementos dos novos discursos sociais e relacionados com o imperativo do momento: “seja feliz (a qualquer preço)”.
Quando Freud escreveu seu celebre texto “Luto e melancolia”, durante a primeira guerra mundial (texto publicado em 1917), a relação que as pessoas tinham com a morte era diferente da nossa. A pergunta que se faz é: há condições, hoje, para se viver o luto, no tempo que cada um necessita para elaborar a sua dor? Quem tem hoje 40, 50 anos deve se lembrar dos seus pais contando como eram os rituais relacionados com a morte. Era muito comum que os defuntos (sim… “essa palavra” também é bastante evitada nos nossos dias) fossem velados nas casas, com os caixões sobre a mesa. Depois, as procissões saiam pelas ruas da cidade a pé. A morte era um evento público. Em cidades pequenas, se anunciava a morte em carros de som pelas ruas. Não era incomum que as pessoas morressem próximas aos seus entes queridos, em casa. A morte – que hoje está cada vez mais por conta das questões da medicina – nem sempre foi encarada desta forma. Assim como a dor pela perda.
O enlutado é convidado (ou intimado) pelas pessoas ao seu redor para superar a sua dor e sofrimento no menor tempo possível. Quando alguém termina uma relação amorosa, não é incomum ouvirmos as expressões “passa a régua”, “vire a página”, “a fila anda”. Recentemente, procurou-me uma jovem que havia rompido um namoro que durara quase dez anos. Chegaram a morar juntos no exterior por um tempo. Ela estava sofrendo muito. Disse que pensava no rapaz todo o tempo. Quando perguntei por que ela desejava fazer análise, me respondeu que estava preocupada porque chorava todos os dias. Fazia menos de um mês que o rompimento se dera de maneira definitiva.
Em tempos de intolerância à espera[1]; dos imperativos “seja feliz sempre, faça tudo o que tem vontade…”; tempos em que a imagem determina o que se é; do homem empresário de si; da busca pela felicidade eterna… há possibilidade de viver as perdas sem precisar adoecer por isso? Vamos lembrar novamente de Freud. Ele nos avisa que quanto mais distante o real do ideal, mais neurose.
Mas voltemos ao nosso tema. O que é o luto?
O luto, em si, não é uma doença. É um trabalho psíquico necessário para que consigamos fazer a retirada progressiva de nossa libido (energia psíquica) do objeto perdido[2] para poder, com o tempo, reinvestir em novos objetos, em novas relações. É um processo singular, que despenderá tempos diferentes para cada um e que não ocorre de forma linear[3].
Em “Luto e Melancolia”, Freud faz uma importante diferenciação entre estes dois quadros. Talvez, nos dias de hoje, pudéssemos dizer “diferença entre o luto e a depressão”. Ambos têm sintomas muito parecidos. Gostaria de citar literalmente Freud e acredito que possamos fazer uma relação bem direta com o personagem principal do filme. Freud escreve: “A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda a atividade e um rebaixamento da auto-estima, que se expressa em auto-recriminações, chegando até a expectativa delirante de punição. O luto revela os mesmos traços, exceto um: falta nele a perturbação do sentimento da auto-estima. No resto é a mesma coisa”. Embora Freud aproxime o luto da melancolia com relação aos sintomas, há um “além” que faz toda a diferença. Além das auto-recriminações, aquilo que se perdeu, já não é tão claro para o melancólico como é para o enlutado.
O DSM V (Manual diagnóstico e estatístico para transtornos mentais), publicado em 2013, aproxima o luto da depressão e estabelece que no caso de um luto, passadas duas semanas sem ‘melhoras dos sintomas’ pode-se diagnosticar o mesmo como um “transtorno de humor”. Mas será que podemos padronizar e considerar como um critério para o luto patológico (ou mesmo para o luto normal), o tempo pelo qual cada um vive a sua dor?
Vivemos um momento em que os sofrimentos foram transformados em doença. Entretanto, Freud é bastante claro quando afirma que “É digno de nota que nunca nos ocorre considerar o luto como o estado patológico nem o encaminhar para tratamento médico, embora ele acarrete graves desvios da conduta normal na vida. Confiamos que será superado depois de algum tempo e consideramos inadequado e até mesmo prejudicial perturbá-lo”. Mas, o desejo incessante em eliminar o sofrimento das nossas vidas, nos leva a buscar todo o tipo de pseudo-saídas ou tamponamento da dor; nos leva a acreditar em promessas milagrosas. O que tem sido essa explosão de livros de auto-ajuda das últimas décadas? Não quero generalizar e há relatos de pessoas que se sentem beneficiadas com essa literatura. Mas seguramente perdemos os critérios. Coisas do tipo “seja feliz a qualquer custo”; “dez passos para encontrar a felicidade…” devem nos levar a pensar sobre essas propostas que podem chegar a ser “indecentes”. No filme em questão, Patrick chama os amigos para comerem uma pizza com ele, no dia em que tem a notícia da morte de seu pai. Estão todos rindo e discutindo sobre filmes. Silvie, a namorada de Patrick, parece incomodada. Num determinado momento afirma: “Não acredito que estamos discutindo sobre Star Treck agora…!!!!!”. Todos param por um momento, mas o jovem sobrinho de Lee retoma o assunto, rindo. Aquela que poderia denunciar que existe uma dor, é silenciada.
A medicalização desmedida (inclusive do luto normal) é outro fator que pode impedir o sujeito de problematizar seus sintomas. Sabemos que a sociedade do culto à imagem (e as milhares de fotos com pessoas fazendo ‘biquinho’ das redes sociais nos dizem a todo momento “olha como eu sou demais!”…”Veja como sou linda”) também pode tamponar um sofrimento, um medo de se sentir “fora deste mundo do espetáculo”. O filósofo Byung-Chul Han nos alerta: “Hoje em dia, as coisas só começam a ter valor quando são vistas e expostas, quando chamam a atenção. Hoje, nos expomos no facebook, e com isso nos transformamos em mercadoria”.
O mal-estar da contemporaneidade é a dor. Mas não a dor do luto pelas perdas, já que esta deve ocorrer e faz parte do trabalho psíquico. É a dor pelo empobrecimento da subjetividade, pela ênfase na imagem e pelo predomínio de um discurso pautado na falsa idéia da possibilidade de uma felicidade sem fim.
“Exclusão”, nos nossos dias, parece ter virado sinônimo de desamparo. Há cenas em “Manchester…” que nos indicam uma saída no sentido de respeitar o tempo de luto do outro sem, no entanto, deixá-lo no desamparo. Logo após a perda dos filhos, Lee vai morar em outra cidade, em um quarto. O irmão (Joe) vai visitá-lo e, diante daquele espaço com caixas amontoadas e sem móveis que representa muito bem como Lee se sentia, Joe insiste para saírem e comprar uma mobília. Mesmo resistindo, o personagem central aceita o acolhimento do irmão. É essa a linha tênue entre dar uma continência para o enlutado, para aquele que sente uma profunda dor sem, no entanto, invadir e forçar, muitas vezes, uma falsa alegria, apenas porque não suportamos a dor do outro; não suportamos o medo de sentir a mesma dor.
Se o medo de sofrer nos deixa encapsulados, perdemos a capacidade de nos implicar. Vocês já repararam que o problema é sempre “o outro”? Como não nos responsabilizamos hoje em dia, por nada? Costumo brincar e dizer que tenho ouvido, ao longo dos anos, falas do tipo “as pessoas têm muita inveja de mim”…”os outros são anti-éticos, corruptos, só pensam em si”…”as pessoas são preconceituosas…”, mas quem é esse “outro” que nunca aparece? Deve viver em algum planeta distante do nosso, porque nunca ouvi alguém dizer.”eu sou o invejoso da história”…”eu quero mal às pessoas”…”eu sacaneei alguém do trabalho para pegar o lugar dele”…”puxei o seu tapete”…enfim. Implicar-se, exige contato com a dor de saber que somos imperfeitos…incompletos. Erramos. E, às vezes, erramos feio. Cometemos erros fatais.
Vamos pensar ainda no personagem principal do filme. Ele comete um erro. Um erro fatal. Há possibilidade de superação? Alguém pode se perdoar por causar a morte dos filhos? Questão difícil. A culpa pelo desfecho de seu erro é tão brutal, que Lee revela o desejo de ser fortemente punido pelo outro. Após passar pelo inquérito na delegacia, o personagem de Casey Aflleck é liberado pelos policiais. “É isso? Eu posso ir?”, pergunta. “Foi um erro. Não vamos crucificá-lo” responde o policial. Talvez fosse isso que Lee desejasse. Que alguém pudesse puni-lo pelo que fez. Ele então, toma rapidamente a arma do policial e tenta dar um tiro na própria cabeça, mas também aí ele falha.
Lee é um homem triste. Sem vida. Para além do luto, ele nos parece melancólico[4]. Na cena em que seu sobrinho pede para ligar o rádio no carro e pergunta se ele gosta de uma determinada banda, Lee responde: “ Todos os sons são os mesmos para mim”. Como sobreviver à dor? Como suportar o “nada”? O filme não tem um final feliz. Lee não se transforma em um ser alegre e nem encontra a felicidade. Coisa rara em um filme Hollywoodiano.
Mas, apenas Lee perde? O filme nos apresenta seu sobrinho, Patrick, em luto pela morte do pai. E quem mais? Podemos imaginar o luto de sua ex-mulher, que também perdeu os três filhos. Cada um vai viver a dor de uma forma, por períodos de tempos diferentes. Vocês dirão: mas o luto de Lee é pior, pois ele foi responsável pela perda dos filhos. E porque não podemos supor que a ex-esposa também não se sentisse extremamente culpada por confiar a guarda das crianças ao pai – muito amável – mas por vezes inconsequente?
Na cena inicial do filme, nós nos deparamos com uma pergunta. Em um flashback, Lee está no mar, em um barco com o sobrinho e o irmão e ele pergunta para o menino: ‘Se pudesse levar um cara com você para uma ilha para estar seguro… se estivesse entre eu e seu pai, quem você levaria?’ O garoto, esperto, responde que escolheria o pai. O enigma colocado no início do filme já nos alerta para o que está por vir.Seria Lee responsável o suficiente para cuidar de uma criança? No meio do filme, o mistério se resolve: Após uma noite de muita bebida e drogas, Lee resolve sair na madrugada para comprar mais bebida. Acende a lareira para aquecer os filhos que dormiam e sai de casa. No caminho, ele se pergunta se teria colocado ou não a tela de proteção na lareira. Diante da dúvida, não retorna. Porque será? Na volta, vê a casa em chamas. Um acidente fatal acontece. E isso vai desencadear uma sufocante culpa e um luto aparentemente sem indicativos de dissolução. O que a sociedade chama de “erro”, os analistas chamarão de “ato falho”. Um ato falho é a expressão de forças inconscientes e, portanto, diz respeito a algum material ao qual não temos acesso, mas que comparece por meio de seus efeitos. Isso não significa que o sujeito não seja responsável pelos seus atos. Nossas escolhas (mesmo as escolhas inconscientes) tem conseqüências e devemos responder por elas.
Pensamos na perda irreparável do personagem do filme. Mas o significado das perdas e a maneira como encaramos a morte não foi sempre a mesma. Talvez, no início do século passado, por exemplo, um filme como este não causasse o impacto que nos causa hoje. Lendo a própria biografia de Freud, me deparo com algumas de suas perdas: em 1920, morre sua filha mais nova (e muito querida, Sophie). Em 1923, quando se deparava com o início dos sintomas de um câncer devastador (que lhe traria enorme dor e sofrimento nos próximos anos), morre o neto mais amado (de 4 anos), filho de Sophie. No mesmo ano, sua “melhor sobrinha” (Caecilie), que era solteira e estava grávida, suicida-se tomando veneno. Tudo em um pós-guerra bastante doloroso (tivera dois de seus filhos no front – Martin e Ernest – por tempos sem ter notícias). Durante o nazismo, perdeu quatro de suas cinco irmãs nos campos de concentração. Enfim, também este pensador sobre a vida e a morte teve sua teoria pautada na própria dor da perda e do luto. E durante todo esse período, manteve-se extremamente produtivo. Talvez o destino para a dor de seus lutos e perdas fosse a criação. Talvez esta seja uma possibilidade de saída para o luto: transformar a dor em força, em criatividade, em luta. Lembremos de algumas frases das redes sociais na época do impeachment da presidente Dilma: “transformar o luto em luta”.
Em quais outras saídas (destinos para o luto) podemos pensar, sem incorrermos na tentação de desejar um final feliz para o nosso filme?
Poder expressar com palavras o que se sente, não é pouco. O filme vai caminhando para essa possibilidade, apesar de todas idas e vindas entre abrir-se para o outro e voltar a se fechar na dor – movimento, aliás, característico do enlutado. Cenas como a “explosão” emocional de Patrick (quando ele relaciona o fato do congelador da casa não fechar com o corpo do pai no freezer aguardando o enterro) indicam uma saída para aquele ‘congelamento’ de emoções. Já próximo do final, o momento em que o tio sugere para o sobrinho vender uma coleção de armas que pertenciam ao Joe, para comprar o tão desejado (pelo rapaz) motor do barco, nos emociona. Lee sorri. A música (até então triste) muda. E na sequência, nos deparamos com um dos momentos mais fortes do filme: o encontro acidental de Lee com a ex-esposa, Randi. Ele consegue dizer a ela sobre a sua verdade: “Você não entende. Não há mais nada”.[5]
Depois de tudo, ele pode até sonhar. Uma (provável) e bela referência do diretor a um trecho famoso do início do VII capítulo do livro de Freud “A Interpretação dos Sonhos”. Lee sonha com a filha lhe acordando e dizendo “Pai, você não vê que estamos queimando?”. Poder sonhar. Poder abraçar o sobrinho e dizer “Eu não consigo superar. Desculpe”. Poder dizer que deseja alugar, na outra cidade, um espaço com um ‘quarto-extra’ para quando Patrick for visitá-lo. Estas são as saídas para a melancolização deste luto. A superação não precisa ter “um final feliz hollywoodiano”. Abrir a possibilidade de fazer planos, de se vincular, de chorar, de poder dizer o que sente… este não seria um bom destino para o luto?
Referências
- Luto e Melancolia – S.Freud – 1917 – Ed.Imago
- A Interpretação dos sonhos – S. Freud – 1900 – Ed. Imago
- Freud – Uma Vida para o Nosso Tempo – P. Gay – 1988 –Ed. Cia das Letras
- A Angústia – J. Laplanche – 1987 –Ed. Martins Fontes
- DSM V – 2013
- Filme: Manchester by the sea (Título em português: Manchester à beira-mar) – 2016 – Diretor: Kenneth Lonergan
- Sociedade do Cansaço – Byung-Chul Han – 2015
Notas
[1] A constituição do aparelho psíquico simbólico depende, em grande parte, de como se dá a alternância entre presença e ausência da mãe na relação com seu bebê. É necessário que a criança possa suportar a falta da mãe; tolerar a separação temporária entre ambos. A capacidade de poder esperar é fundante do psiquismo. A maneira como lidamos com os lutos, as perdas, está diretamente relacionada com essa capacidade de separação primária; de podermos aguentar as ausências maternas. Quais serão os efeitos futuros de uma geração que não suporta esperar; que não suporta o tempo necessário para a análise de uma imagem (na passagem veloz dos dedos pelas centenas de fotos na tela); de um texto (na prática das “leituras dinâmicas”)? As futuras mamães, tão habituadas a passar o olhar em poucos minutos por todas as centenas de fotos de viagens e imagens das redes sociais, terão a necessária tranquilidade para poder esperar o bebê adormecer em seus braços, acalentados por essa continência fundamental para o bom desenvolvimento mental da criança? Sim. Os tempos mudam e precisamos nos adaptar a eles. Mas os efeitos (para o bem e para o mal) destas mudanças são inevitáveis. Só não tivemos ainda o “tempo” suficiente para constatarmos quais serão estes efeitos psíquicos (e sociais).
[2] Lembrando que o objeto perdido pode ser uma pessoa, mas também “uma coisa”, um relacionamento, ou um “aspecto da pessoa ou da coisa que se viu prejudicada ou que desapareceu (Laplanche).
[3] Freud, de forma bastante clara, nos dirá que, antes que o trabalho de luto se complete e ocorra o rompimento do vínculo, haverá um sobreinvestimento no objeto perdido, ou seja, um aumento do apego.
[4] “É certo que, por vezes, a melancolia pode ser desencadeada como um luto depois da perda afetiva (da morte, por exemplo) de um objeto amado” (Laplanche)
[5] A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível. – Byung-Chul Han.