Quem tem coragem de confessar sua vaidade?
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30 de abril de 2020A Clemência de Tito1
Por Ulisses Caballi Filho
Último domingo do mês de janeiro, madrugada úmida, que logo daria espaço ao brilho intenso do astro maior, o Sol. Despertei com as vibrações de meu celular; não consegui atender a primeira chamada, mas a segunda foi certeira como uma flecha rumo à presa e quase sem tempo eu falei: “Alô” com uma rouquidão habitual. Do outro lado, uma voz entristecida me dizia:
– “Acabou o sofrimento”.
… De volta com lagrimas no olhar, pensei: o câncer venceu a batalha final da vida. Agora, “Juntou-se com as outras estrelas”, e Abrahão lhe dará conforto em seu seio familiar. “Apesar de eu ser apenas pó e cinza, atrevo-me, Senhor, a convosco falar”2. A flama do Amor prevaleceu ao fim, ainda que num instante alguém tivera ódio, devido a alguns hábitos e idiossincrasias desagradáveis, mas atire a primeira pedra quem nunca sentiu isso…
Em cunho pessoal mais propositalmente pelo apelido familiar de “batismo”, fiz da Ópera de Mozart o título dessa narrativa. No intuito de expor alguns vestígios e bem como podemos ser motivados e ocasionados por estes, apresentados avidamente na ária: Poder, Ambição, Amor e Fidelidade. Por horas ininterruptas pode pairar em nossas memórias apenas um Ato: Tolerar. Sabiamente, Tito, indultou-os com sua clemência.
Esses sentimentos são ambivalentes e seria impossível, até arbitrário de minha parte, tentar traduzir, trazer à tona, mesmo validá-los agora, o que cada um sente ao elaborar um luto. Em tese, me subordino aos fenômenos emergentes às nossas vicissitudes, diante das relações humanas coexistentes desde a mais tenra idade de quaisquer Homo Sapiens: bebês, crianças, jovens, adultos ou velhos. Acredito que essas funções agem plenamente de maneira consciente e até mesmo inconsciente.
O médico e neurologista Sigmund Freud, no início da Psicanálise, via o amor como o sentimento mais importante. Já no fim de sua vida, aos 70 anos, afirmou que além do prazer de viver, demonstrou similar importância a morte no findar do ciclo natural da vida. Relembremos a bonita passagem encontrada em: A Transitoriedade, 1916, quando Freud num campo florido caminhará em companhia dos amigos, um taciturno e um jovem poeta, já famoso. No diálogo contra o pessimismo do poeta, Freud, ressaltou que o valor da transitoriedade da vida está em seu tempo:
“A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”3.
Freud investigou vastamente o antagonismo dessas Pulsões: Vida e Morte (Eros ou Tanatos, se preferirem). Também, creditou aos escritores, antes da sua própria Psicanálise são os primeiros a compreender o enigma da vida em suas quatro estações.
Metaforicamente, é como se estivéssemos numa estrada desconhecida a guiar um carro, prestes a adentrar um túnel escuro e inesperadamente pensamos em mudar a rota e permanecer na claridade do dia… Nas palavras de Freud:
“É como um ritmo hesitante na vida dos organismos; um grupo de instintos precipita-se para a frente, a fim de alcançar a meta final da vida o mais rapidamente possível, atingida uma determinada altura desse caminho, o outro corre para trás, a fim de retomá-lo de certo ponto e assim prolongar a jornada”4.
Em uma entrevista5 para o jornalista George Sylvester Viereck, Freud citou, em toda sua inteireza, a frase: “nós podemos considerar a ideia de que a morte nos chega por vontade própria. É possível que derrotássemos a morte, se não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós mesmos”. Viereck continua a redigir ao sorriso de Freud “talvez seja certo dizer que toda a morte é um suicídio6 disfarçado”.
No texto de (1917 [1915]), Luto e Melancolia, Freud sinalizou as inclinações sádicas ao suicídio; isso nos permite averiguar, stricto sensu, a melancolia e olhar com finura essas afeições. E hoje, com a evolução da ciência somos cada vez mais auxiliados a entender como o organismo humano sofre com essas invasões cancerígenas, sendo impactantes não apenas aos olhos, também às formas e relações. Supõe-se que o corpo e o psíquico encontrem na finitude a saída para acabar com essa dor e tal sofrimento. Isso não diminui o que sentimos diante dessas perdas, mas é fundamental falarmos sobre essa doença, e, principalmente, nominar a palavra proibida – que é “Câncer”.
Em seu pilar, continua Freud na entrevista; “a psicanálise não apenas nos ensina o que temos que suportar, ela também ensina o que temos que evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância do mal não é, de maneira nenhuma, uma consequência do conhecimento”.
Com seu esquife coberto com a última pá de terra, um pássaro sobrevoou aquele aglomerado de pessoas vestidas de preto, enlutadas novamente pelo terceiro ano seguido. Estava certo que era uma cotovia, facilmente identificada pela rapidez e agilidade, além de um canto suave de cantora lírica: emprestava à cena uma sensação de harmonia e liberdade com aquele canto In Memoriam.
Arremato esta breve clemência com as palavras de Freud, que dariam uma bela Ária: “No final, a morte parece mais tolerável do que os muitos problemas que temos que enfrentar”. Lembrando que Freud lutou bravamente contra um câncer, que não o impediu de seguir sua jornada dedicada aos fenômenos inconscientes da mente humana para sancionar que a “Talking Cure”7, é sua herança para entendermos que:
“A perda do amor e o fracasso deixaram atrás de si um dano permanente na autoestima, em forma de ferida narcísica”8
Por isso, sigamos nossas vitas brevis para comemorar outras primaveras com a regente harmonia das pulsões em nossos caminhos.
Uma Ode à Família
De repente, cerraram-se os olhos, tudo lhe escureceste…
Carne e Espírito tornaste apenas um.
Sem volta, agora todos somos atingidos pela dor…
Em nossas preces pedimos folego e redenção aos corpos celestes.
Para amparar mais uma vez a noite em jejum…
Na incansável solitude do amor.
Notas e Referências
[1] La Clemenza di Tito, (1791). Última ópera composta por Wolfgang Amadeus Mozart.
[2] Genesis 18,27
[3] A Transitoriedade, 1916, Freud, Sigmund, Cia das Letras, 2010
[4] Além do Princípio do Prazer, 1920, Freud, Sigmund, Cia das Letras, 2010
[5] Livro: A arte da entrevista uma antologia de 1823 aos nossos dias Fábio Altman pg. 92
[6] https://tempoanalise.com.br/como-sigmund-freud-queria-morrer/
[7] Tradução livre cura através da fala.
[8] Além do Princípio do Prazer, 1920, Freud, Sigmund, Cia das Letras, 2010.
1 Comment
Sem comentarios, apenas um nome que no meio de tantos outros nomeia tanta lembrança.
Soraia de Araújo Chaves!
Presente!