OMS, Dia Mundial da Saúde de 2017: depressão
8 de maio de 2017Publicação original realizada pela Revista Grandes Temas do Conhecimento – Psicologia, da Editora Mythos – Edição nº9
Uma breve leitura do fenômeno à luz da psicologia
A proposta percorrida é de aproximar a psicologia dos fenômenos da violência entre as torcidas de futebol. O texto foi dividido propositalmente em quatro partes, o que lembrará uma partida de futebol ou se preferir de um campo de batalha. No pré-jogo será apresentada uma breve história da violência entre torcidas no Brasil, com os seguintes lances: episódios que marcaram o futebol brasileiro nos últimos anos. Quando a partida for iniciada no primeiro tempo à bola estará nos pés dos torcedores, ou seja, às torcidas entram em campo. No segundo tempo o time da psicologia entre em campo com seus sentimentos e mecanismos de defesas para analisar às torcidas. E, por fim, no pós-jogo quando se fala em violência entre torcidas não podemos deixar no banco de reservas os Holligans, pois estes os principais protagonistas dos fenômenos da violência entre as torcidas que percorre o mundo da bola.
PRÉ-JOGO: HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA ENTRE AS TORCIDAS E TIPOS DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
Enquanto a maioria dos torcedores se prepara para assistir mais um jogo na tarde de domingo, outros não veem a hora “do pau quebrar e o couro comer”.
Os primeiros episódios dos fenômenos da violência no futebol brasileiro iniciaram-se na década de 1970. Período pelo qual a sociedade passava por grandes revoluções e podemos dizer que, muitos indivíduos encontraram nas torcidas futebolísticas a “válvula de escape” para a repressão que ocorria no país, principalmente para a juventude. O que mudou nesses 40 anos? Entende-se que muitos desses jovens reprimidos e injustiçados no cotidiano encontraram nas torcidas uma identificação social, sendo que as brigas entre torcidas eram a maneira de liberar a energia até então contida pelos regimes políticos. Entretanto, os atos das violências transferidas para o futebol não justificaram em nada a impunidade exercida no país.
Quem não se lembra do fatídico episódio no Estádio Municipal da cidade de São Paulo, o Pacaembu? Foi na final do Torneio de Juniores no ano de 1995, jogo entre Palmeiras e São Paulo e sequer eram os times principais, ou melhor, dizendo os profissionais. Até hoje, buscamos respostas para aquele festim da massa em comboio com a violência; não tinha para onde correr, em todos os lados era pancadaria, pedradas e pauladas, a violência era exposta mundialmente pelas redes de televisão.
Já não bastava a tragédia em si, alguns protagonistas disseram no dia seguinte que fariam novamente a mesma coisa. Outro fato insinuante é que após as brigas entre as torcidas não existem fatores de expiação entre os envolvidos, apenas para seus familiares que na maioria das vezes, não sabem que os filhos participam dos massacres.
Nesse momento, a verdade cai sobre si, e muitos lamentam a perda de um filho e no outro lado o clã homenageia momentaneamente o torcedor morto na fatídica guerra entre as torcidas, jurando vingança devido ao pacto consanguíneo. O homenageado é posto num pedestal virá um herói, permanecendo nesta função até outro torcedor ser morto.
A revista Lance em abril de 2012, realizou um levantamento das mortes ocorridas no Brasil devido a conflitos entre torcidas, sendo registradas 155 mortes no período de 24 anos. Por este motivo, precisamos olhar de frente para este fenômeno social, que se dilacera cada vez mais.
Na psicologia estudamos alguns tipos de violência. A psicológica, a física e patrimonial. Podemos exemplificar esses três tipos a partir da linguagem futebolística, começando pela violência psicológica. Podemos apontar em alguns cânticos a sugestão dos terrores psicológicos, por exemplo: “Vem filho da …, para de agitar e vem pra luta”; “eu dei porrada até em português, a galinhada correu outra vez, a bicharada foi parar no hospital”.
Esse tipo de violência é aquele que não deixa marcas visíveis, entretanto, é o que mais demora a passar. Podemos dizer que os gritos de guerra de cada torcida podem incentivar a violência psicológica, fazendo a ponte com o conflito direto. O conteúdo das frases são fatores decisivos, pois muitas vezes contém dizeres de humilhações, ameaças e preconceito – assim favorecem o inicio do conflito.
Logo, a violência psicológica é substituída pela física, sendo esta a que provoca marcas corporais e em muitos casos até mesmo mortes. E por fim, a patrimonial – comum quando um time é eliminado de uma competição – quando é destruído o patrimônio dos estádios, locais públicos e privados durante o percurso de volta para as casas.
PRIMEIRO TEMPO: TORCIDAS E “ARRUACEIROS”
O que é uma torcida? É um grupo de pessoas que vibram com uma vitória de seu time, que choram quando perdem, que ficam nervosas quando empatam um jogo e, principalmente, que respeitam os adversários durante e depois dos jogos. As torcidas que cantam, incentivam seus times, são elas que “orquestram” os “maestros” que conduzem a mais perfeita criação geométrica, a bola. Não generalizando, mas muitas vezes são protagonistas dos atos de violência gratuita para com os torcedores rivais ao saírem dos estádios.
O que são às torcidas organizadas? São associações de torcedores de determinados times que utilizam uniformes desenvolvidos por eles próprios. A maioria dos times brasileiros tem em torno de quatro ou cinco torcidas, em alguns casos até mais. Apesar de serem torcidas organizadas de um mesmo time, muitas brigam entre si. Como isso é possível? Seria uma questão política por busca de poder ou psicológica para saber qual é a que ama mais o time? Seria uma cena clássica de ciúmes? Cada torcida organizada tem o seu totem: urubus, raposas, gaviões, dragões, lobos, porcos, peixes, cachorros, furacões, raios, relâmpagos, fantasmas, caveiras, dentre outros.
Freud descreve totem da seguinte forma
“via de regra é um animal (comestível e inofensivo ou perigoso) e mais raramente pode ser um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva, a água) que mantém relações peculiares com todo o clã”, (Totem e Tabu, 1913).
As torcidas organizadas produzem todos os uniformes com o totem adotado e o nome das torcidas, mais uma característica de identificação, ou seja, de pertencimento a algo. As torcidas organizadas levam para os estádios os famosos “bandeirões” e faixas. São responsáveis pela criação de “gritos de guerra” que motivam seus times e confrontam os adversários. Não param sequer um segundo de incentivar seus times. Mas é sempre assim?
Quem são os arruaceiros? São aqueles que se dizem torcedores, mas não veem a hora de brigar pelo mínimo possível e agem por instinto colocando em risco a vida de várias pessoas inocentes. Atuam como se existisse uma disputa de virilidade, para provar quem é mais viril ou se preferir uma questão de vida ou morte. Neste momento, os arruaceiros se aproximam dos animais cientificamente. Um torcedor violento equipara-se a um macho alfa, pois seu nível de agressividade é maior que os demais, portanto, precisa mostrar-se útil em qualquer situação, inclusive nas brigas entre torcidas, agindo como um animal instintivamente em manutenção de sua autopreservação.
Conforme descrito por Freud (1921), um grupo pode impressionar um indivíduo, pois no momento de interação (em nosso caso, o torcedor) passa a ter características de poder ilimitado e um perigo insuperável. Dito isto um torcedor sente-se parte de um “clã”, sendo respeitado pelo poder adquirido com o status ali conquistado.
Sendo que a emoção de vibrar com as torcidas é uma espécie de contágio emocional, uma grandeza de investimentos “libidinosos” – como percorrer distâncias quilométricas, assistir aos jogos em baixo de chuva ou de um sol de 40 graus; tudo isso para ver os “objetos” amorosos. As torcidas são mantidas unidas por um poder além do amor quando um torcedor passa a integrar o grupo, e esse, por sua vez, se permite influenciar e consequentemente recebe calorosamente o amor “materno” novamente oferecido pelas torcidas. Mas quando algo ameaça esse aconchego origina-se o motivo para as batalhas entre os “arruaceiros”.
De um modo geral fazer parte de uma torcida permite a identificação com os demais, realimentando os sentimentos oceânicos amalgamados com os outros na perda das próprias definições, deixando-se comandar pelo todo, isto é, remete aos primeiros meses de vida do bebê em que ele e a mãe eram um só corpo. Assim, o torcedor no seio da torcida pode estar vivendo um “flashback” de prazeres primitivos, o mesmo que ele teria experimentado ainda quando com poucos meses de vida.
SEGUNDO TEMPO: ANÁLISE DAS RIVALIDADES A PARTIR DE CONCEITOS PSICOLÓGICOS
Selecionamos cinco mecanismos de defesas e seis sentimentos para analisarmos as torcidas; tratam-se de conceitos importantes para a compreensão da violência entre torcidas.
Primeiramente apontamos para o mecanismo do deslocamento: como o nome já diz desloca características de um local para o outro. Um exemplo clássico nesse sentido é quando, ao voltar para casa após uma derrota, o torcedor dirige sua agressividade para outros objetos tendo como alvo seus próprios familiares como esposas e filhos.
Em segundo lugar, temos a identificação, seja do torcedor com o time (algo similar a relação de dependência do bebê com a mãe), com os outros torcedores ou com o agressor. Em relação a essa última forma de identificação, podemos elucidar com esta cena: um torcedor que foi a estádio a primeira vez, é abordado por outros que lhe remetem medo e até mesmo uma ameaça física. Porém, o torcedor passa a se identificar com os demais, como no mecanismo de projeção narrado por Freud; “o ato de atribuir a uma outra pessoa, animal ou objeto as qualidades, sentimentos ou intenções que se originaram em si próprios”. Por exemplo, um torcedor que fala mal da torcida adversária pode justificar a ação como algo que o outro também faz; logo é uma espécie de revide diante da oportunidade. Porém, não consegue elaborar que essa vontade de falar mal do torcedor adversário nada mais é que uma tentativa de expelir esse sentimento de si.
Outro conceito importante é o de negação: é o processo que faz com que os torcedores desconsiderem uma parte da realidade, por exemplo, o fato de que o time perdeu o jogo porque jogou pessimamente, acreditando que perdeu porque o juiz roubou.
Também podemos falar em introjeção, ou seja, um mecanismo em que ocorre a incorporação dos objetos bons para destruir os objetos mal, por exemplo, “é preciso acabar com a torcida adversária, pois ela está tentando acabar comigo”.
Outro conceito importante é o de regressão. Esta ocorre quando o indivíduo está diante de uma frustração (por exemplo, de uma derrota para o maior rival), podendo ocorrer um estado de regressão no qual o afago materno era a única solução após uma queda. Apesar disso, é fundamental para que em outras ocasiões o ego já esteja fortalecido diante de um novo fracasso.
Por fim, conforme Klein & Riviere (1975), propomos a interpretação das torcidas utilizando sentimentos. O primeiro deles é a agressividade: podemos dizer que ela é inata tanto no homem quanto no animal e, ao aproximarmos esse sentimento do futebol, o encontramos muitas vezes no prazer da exaltação. O fator agressivo torna-se explícito a partir do momento que os torcedores sentem-se hostilizados.
Outro sentimento fundamental é o ciúme – normalmente ocorre na possibilidade de um torcedor ser humilhado por outro torcedor – ou a inveja – ou seja, a capacidade que cada torcedor tem de reter as coisas boas evitando assim frustração e ódio diante de comparações com outros torcedores.
É importante apontar também para o sentimento de rivalidade que esta relacionado com a autopreservação do torcedor diante de seu objeto de amor. Da rivalidade pode-se passar para a agressão. Apesar disso, não podemos generalizar, pois dentro das torcidas como um todo, inclusive das organizadas, existe uma grande variedade de pessoas.
Podemos falar também na voracidade: está próxima da agressividade, também sendo inconsciente. É uma maneira de desejar sempre vitórias diante dos times adversários, algo que fortalece o ego dos torcedores.
Finalmente, citamos o ódio que acontece, por exemplo, quando um juiz marca um pênalti que não existiu, fazendo com que o torcedor se sinta roubado.
Utilizando a metáfora da defesa no futebol temos agora alguns mecanismos que são responsáveis pela proteção do ego dos torcedores diante das ansiedades, perigo e frustrações enquanto a bola rolar.
PÓS-JOGO: HOOLIGANISMO, O FENÔMENO MUNDIAL DA VIOLÊNCIA ENTRE TORCIDAS
A violência entre torcidas é uma tendência mundial, pois a encontramos em diversos países como, por exemplo, Argentina, Alemanha,
Espanha, Inglaterra, Itália, Uruguai, dentre outros. Portanto, o fenômeno mundial das brigas entre torcidas torna-se conhecido como hooliganismo.
Hooligans são indivíduos pertencentes a gangues com tendências políticas neonazistas, além de possuírem comportamentos extremamente destrutivos e hostis para com outros torcedores. É importante ressaltar que quanto maior for a hostilidade, mais difícil será de evitar a batalha entre as torcidas. É a satisfação do ódio que percorre o sangue derramado entre os punhos e corpos repletos de hematomas. Em muitas ocasiões, ocorrem sentimentos coletivos e recíprocos que proporcionam aos hooligans se aproximarem dos efeitos transgressores e primitivos.
As brigas entre Hooligans não acontecem de maneira individual e isolada, tendo como requisito a formação dos grupos massificados. Fato que não difere dos demais países no “mundo da bola”.
Ao permanecer ao grupo, o hooligan sente-se acolhido e isso lhe induz uma suposta invencibilidade. O que pode remeter ao estado de prazer. Em outro momento, esse estado de invencibilidade torna-se ameaçado, quando deparado com uma torcida adversária. Ser um Hooligan é falar apenas uma língua: a da violência; é ser mais um na fraternidade mítica das “torcidas”. Nessa mesma linha, encontramos as tatuagens incorporadas como totem como uma extensão corporal dos “objetos bons” de seus times, muitas vezes representados por suas insígnias num corpo que não consegue mais ser individualizado, delimitado e respeitado, necessitando o tempo todo de ser notado e ter um suposto espaço na família.
O conflito entre as torcidas não pode ser cessado instantaneamente, pois os sentimentos de rivalidade se equiparam e precedem a existência humana. Descreve Freud em (1913) que quando um indivíduo tenta acessar seu inconsciente dentro do grupo por meio de um desejo reprimido, irá provocar a ação coletiva no grupo que pertence sendo uma espécie de bomba relógio para os demais também acessarem seus desejos reprimidos e liberá-los de maneiras agressivas e violentas para com os outros. Podemos dizer que o inconsciente do Hooligan age instintivamente devido à popularidade que a violência lhe propõe a cada episódio de violência, fortalecendo assim o ego fragilizado em algum momento de sua vida.
Diante da última citação qual será a saída inicial? Ainda temos muito que fazer em prol das torcidas de modo geral, mas para isso será necessário investimento afetivo e social para com a sociedade, quem está disposto a treinar este time?
Referências Bibliográficas
- CABALLI FILHO, Ulisses. A Formação do Sujeito: o Nascimento dos Torcedores. Parte I. RevInter Revista Intertox de Toxicologia, Risco Ambiental e Sociedade, v. 4, n. 3, p. 267-273, out. 2011.
.O Complexo de Édipo a Primeira Rivalidade dos Torcedores – Parte II. RevInter Revista Intertox de Toxicologia, Risco Ambiental e Sociedade, v. 5, n. 1, p. 154-161, fev. 2012. - FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Totem e Tabu, Contribuições à História do Movimento Psicanalítico e outros textos. Vol. (1912-1914) Obras Completas.
. Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Além do Principio do Prazer, Psicologia de Grupo e outros trabalhos Vol. XXIII (1920-1922) Obras Completas. - KLEIN, Melanie & RIVIERE, Joan. Amor, Ódio e Reparação. 2ª Ed. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
- LAPLANCHE, Jean. & PONTALIS, Jean Bertrand, Vocabulário da Psicanálise, São Paulo, Martins Fontes, 2004.
www.revistalancenet.com.br acessada em 15/05/2012.